Wednesday, October 07, 2015

Cúpula sabotada


Pedro J. Bondaczuk

A apenas 12 dias da reunião de cúpula das superpotências, a ser realizada em Genebra entre seus dirigentes máximos, o presidente norte-americano, Ronald Reagan, e o secretário-geral do PC soviético, Mikhail Gorbachev, coisas estranhas começam a acontecer para atrapalhar o encontro. Como os três recentes casos de deserção de russos para o Ocidente, tendentes a despertar as maiores suspeitas nos dois lados do Atlântico. Primeiro foi a questão do marinheiro ucraniano Miroslav Medvid, que saltou de um navio de seu país no Rio Mississipi. Ele foi conduzido a instalações do governo norte-americano, interrogado e na última hora, desistiu de pedir asilo nos Estados Unidos.

Mal o incidente havia esfriado, eis que ocorre algo semelhante no explosivo Afeganistão, mais especificamente na sua capital, Cabul. Ali, a pretexto de estar cansado de combater em território alheio (o que não deixa de ser plausível), um jovem soldado soviético, de apenas 19 anos, refugiou-se na embaixada norte-americana daquela cidade, pedindo asilo. A "temperatura" chegou a ficar bastante elevada, tanto em Washington quanto em Moscou, quando os russos cortaram a eletricidade e cercaram a missão diplomática de "Tio Sam". No dia seguinte, o adolescente, Vassilyevich Sukhanov, expressava o seu "arrependimento pela atitude impensada" e decidia retornar para casa, não sem antes obter uma garantia de que não seria punido por seus superiores.

Finalmente, na segunda-feira, estourou o escândalo mais sério envolvendo deserções. Vitaly Yarchenko, ex-agente da inteligência soviética, que chegou a ocupar o quinto posto na hierarquia da KGB (que envolve centenas de milhares de subordinados), apareceu de repente na embaixada de seu país em Washington para fazer uma estarrecedora revelação. A de que fora seqüestrado e drogado pela CIA em Roma e levado contra a sua vontade para os Estados Unidos. É evidente que os norte-americanos negaram, indignados, a acusação (indignados até demais). O presidente Reagan, inclusive, aventou a hipótese desse caso (e quem sabe, os demais) ter sido uma hábil manobra do Cremlin para criar sombras na reunião de cúpula dos próximos dias 19 e 20. Até pode ser, como pode ser o contrário.

Essa, afinal, não seria a primeira vez que um encontro dessa natureza correria riscos de ser cancelado, por causa de incidentes bobos, às vésperas de sua realização. Nunca é demais citar o "affaire" do avião-espião dos Estados Unidos, U-2, abatido por caças russos em 1 de maio de 1960, quase às vésperas de uma visita do presidente Dwight Eisenhower a Moscou. Dez dias depois do aprisionamento do piloto norte-americano Gary Francis Powers, o convite para essa viagem, de tamanha importância na época, foi cancelado. O incidente dos mísseis em Cuba, por outra parte, levou ao fracasso uma reunião dos líderes das superpotências, que deveria ser realizada em Paris. John Kennedy e Nikita Kruschev passaram a trocar desde então ácidas acusações mútuas e a pretendida distensão Leste-Oeste foi, mais uma vez, "para as calendas".

O encontro de Genebra, de qualquer forma, nem precisaria de novas sombras para fracassar de vez. O relatório pessimista de George Shultz, de anteontem, após concluir dois dias de intensas conversações com Moscou, faz decrescer sensivelmente as esperanças de que se possa chegar a algum acordo concreto nessa reunião de cúpula que se avizinha. E tudo leva a crer que essa pode ser a última chance para que se evite o que hoje é impensável. Será que as superpotências desejam perder essa oportunidade para uma rara demonstração de lucidez? Parece que sim!

(Artigo publicado na página 11, Internacional, do Correio Popular em 7 de novembro de 1985)


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