Sistema
de celebridade
Pedro J. Bondaczuk
O
papel da imprensa, dos mais importantes em qualquer sociedade democrática que
se preze, é o de informar tudo o que acontece, com exatidão, isenção e
responsabilidade. Para tanto, tem que ser absolutamente livre, sem qualquer
espécie de restrição ou de coação, nem de governos, nem de anunciantes, nem de
políticos e nem de quem quer que seja. Todavia, sua função é trazer as
informações ao cidadão e não ser “ela” a notícia. De uns tempos a esta parte,
contudo, alguns órgãos com a missão de bem informar a população vêm distorcendo
(alguns sutilmente, outros de forma ostensiva) sua obrigação. Há jornais e
revistas, por exemplo, transformados numa espécie de partidos de oposição, o
que, óbvio, não é e nem deveria ser seu papel. É grave distorção de função. Arregimentam,
é certo, grande número de correligionários. Perdem, todavia, o que têm (ou
deveriam ter) de mais precioso: a credibilidade.
O
escritor Umberto Eco classifica esse estilo contemporâneo de fazer jornalismo
de "sistema de celebridades". Vários meios de comunicação não se
limitam mais a simplesmente reportar o que acontece, como deveriam sempre
fazer, mas proposital ou acidentalmente, deliberada ou fortuitamente, acabam ou
sendo notícia ou a induzindo a acontecer. O romancista italiano cita, a título
de exemplo, um caso em que isto ocorreu: "A contestação estudantil de 1968
foi influenciada pela intervenção da mídia, que favorece a sua reprodução quase
instantânea em países diferentes com padrões similares. Mas se no tocante a
1968 se pode falar de um fenômeno que explodiria de qualquer maneira por uma
necessidade histórica, diferentes são as reflexões a fazer pelas muitas
reproduções de 1968 em menor escala. Freqüentemente elas brotaram porque grupos
estudantis tendiam a copiar a imagem do estudante criada pela mídia".
A
imprensa, muitas vezes de forma até involuntária (mas às vezes deliberada), é
criadora por excelência de estereótipos. Com o passar do tempo, de tanto o
modelo estereotipado ser imitado, finda por se tornar concreto. Da mesma forma que
os órgãos de comunicação podem ser utilizados para opor resistência a tiranos e
tiranias – o Leste europeu criou seus órgãos "underground",
mimeografados, para expor a verdade ao povo, alguns dos quais com circulação
até maior do que os oficiais – se prestam a perpetuar ditaduras.
Não
é por acaso que quando se dá um golpe de Estado, os primeiros pontos a serem
tomados pelos golpistas são as emissoras de rádio e televisão e as redações de
jornais. Por que? Porque uma imprensa livre é a maior arma da sociedade contra
tiranos e tiranias. A divulgação feita, em 19 de dezembro de 1984, pelo jornal
"The Washington Post", acerca do objetivo da missão ultra-secreta da
nave norte-americana reutilizável "Discovery", que seria lançada no
espaço no dia 23 de janeiro de 1985, levantou, nos EUA, uma enorme polêmica
sobre a liberdade de imprensa.
O
Pentágono considerou a quebra de sigilo uma violação às normas de segurança
nacional. O editor do "Post", Benjamin Bradley, repudiou a acusação,
feita pelo próprio secretário de Defesa, Casper Weinberger, argumentando que o
cidadão daquele país tinha todo o direito de saber sobre o programa do avião
orbital, cuja missão era a de espionar o território da extinta União Soviética
e cujas conseqüências poderiam levar as superpotências a outra séria crise.
Quem estava certo, o governo ou o jornal? Óbvio que era o “Post”.
Recorde-se que foi
uma série de reportagens do "The Washington Post" que levou à queda
do presidente Richard Nixon, em 8 de agosto de 1974, que renunciou para não ter
seu "impeachment" aprovado pelo Capitólio, depois do caso de
espionagem ocorrido no edifício Watergate. São denúncias de tantos outros
jornais de renome daquele país que têm levantado a opinião pública mundial
contra os abusos cometidos por paranóicos sequiosos de poder, que violentam os
direitos humanos nas mais variadas formas e diversos lugares da Terra,
prendendo, expropriando bens, torturando, matando e difamando pessoas,
geralmente impotentes para se defenderem.
O
que seria do mundo sem uma imprensa livre? Os cidadãos sentir-se-iam inseguros
até para sair de casa sem essa tribuna para denunciar as mazelas e a
prepotência dos que se valem do poder público para promover interesses
pessoais, a sociedade, inclusive, poderia até mesmo se desorganizar com os
indivíduos sentindo-se ameaçados em sua integridade, criando leis próprias,
calcadas apenas na força.
Não
é mera coincidência o fato das maiores atrocidades e genocídios acontecerem
onde a atuação dos órgãos de divulgação é restringida e controlada pelo Estado.
Onde a imprensa é manietada e amordaçada e impedida de exercer a sua missão de
informar e alertar a opinião pública. O mesmo meio com o qual se pode despertar
a consciência das pessoas, porém, se mal empregado, tende a alienar os
cidadãos. A televisão, pela sua instantaneidade, era, até não faz muito,
veículo virtualmente imbatível em termos de ser o primeiro a dar a notícia,
antes do advento da internet. Hoje é a rede mundial de computadores que é
insuperável no quesito instantaneidade. Esse poder fantástico implica também em
uma responsabilidade proporcional, que quase nunca fica clara a quem compete
tratar do assunto.
O
jornalista francês François Henri de Virieu, num ensaio publicado pelo
"Caderno de Sábado", do "Jornal da Tarde", constatou:
"...O sistema midiático, isto é, a televisão e todas as redes por cabo,
fibras ópticas, feixes hertzianos ou satélites que fazem circular a informação,
pesa cada vez mais em nossa vida política e social. Ninguém comanda
verdadeiramente este conjunto. Não há mais cidadão Kane, pois as
responsabilidades estão muito diluídas. Mas todas as nossas instituições são
afetadas por ela". E como são... Hoje em dia um político não ganha mais
eleições pela mensagem que emite, pelo programa de governo que propõe, mas pela
imagem que transmite em suas aparições na TV. Isto ocorreu, por exemplo, nos
Estados Unidos, com John Kennedy em relação a Richard Nixon. E repetiu-se com
Ronald Reagan em seu confronto com Jimmy Carter, com George Bush (pai), com
Bill Clinton, com George W. Bush e com Barak Obama.
A
fartura de informação e, pior, além de tudo truncada, tende a conduzir a
opinião pública, cada vez mais participante das decisões dos políticos, a
terríveis equívocos na avaliação de crises. O norte-americano Daniel J. Boorstin
observou a esse respeito: "A Revolução Russa de 1917 alimentou a euforia
norte-americana com a deposição do regime opressivo do czar e a ascensão do
governo popular num vasto território. O terror bolchevista e o regime
totalitário stalinista que vieram depois fizeram-nos repensar as coisas. Os
acontecimentos de 1917 teriam sido apenas uma guerra civil que substituiu os
czares pelos 'comiczares'?"
Portanto, é pertinente a crítica de Umberto
Eco ao “sistema de celebridade”. Todos os meios de comunicação, sem exceção,
para merecerem esse título e não se transformarem em meros panfletos ou
porta-vozes de propaganda política do partido “x”, “y” ou “z”, deveriam se
limitar a noticiar, com absoluto rigor, o que acontece, sem nenhuma concessão,
mas sem fazer juízo de valor (função exclusiva de leitores, ouvintes,
telespectadores ou internautas, dependendo do meio pelo qual as pessoas se
informam). Não têm o direito de, proposital ou acidentalmente, deliberada ou
fortuitamente, serem notícia ou a induzirem a acontecer. Credibilidade não se
ganha de graça, mas se conquista no dia a dia.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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