Friday, October 23, 2015

Sistema de celebridade

Pedro J. Bondaczuk

O papel da imprensa, dos mais importantes em qualquer sociedade democrática que se preze, é o de informar tudo o que acontece, com exatidão, isenção e responsabilidade. Para tanto, tem que ser absolutamente livre, sem qualquer espécie de restrição ou de coação, nem de governos, nem de anunciantes, nem de políticos e nem de quem quer que seja. Todavia, sua função é trazer as informações ao cidadão e não ser “ela” a notícia. De uns tempos a esta parte, contudo, alguns órgãos com a missão de bem informar a população vêm distorcendo (alguns sutilmente, outros de forma ostensiva) sua obrigação. Há jornais e revistas, por exemplo, transformados numa espécie de partidos de oposição, o que, óbvio, não é e nem deveria ser seu papel. É grave distorção de função. Arregimentam, é certo, grande número de correligionários. Perdem, todavia, o que têm (ou deveriam ter) de mais precioso: a credibilidade.  

O escritor Umberto Eco classifica esse estilo contemporâneo de fazer jornalismo de "sistema de celebridades". Vários meios de comunicação não se limitam mais a simplesmente reportar o que acontece, como deveriam sempre fazer, mas proposital ou acidentalmente, deliberada ou fortuitamente, acabam ou sendo notícia ou a induzindo a acontecer. O romancista italiano cita, a título de exemplo, um caso em que isto ocorreu: "A contestação estudantil de 1968 foi influenciada pela intervenção da mídia, que favorece a sua reprodução quase instantânea em países diferentes com padrões similares. Mas se no tocante a 1968 se pode falar de um fenômeno que explodiria de qualquer maneira por uma necessidade histórica, diferentes são as reflexões a fazer pelas muitas reproduções de 1968 em menor escala. Freqüentemente elas brotaram porque grupos estudantis tendiam a copiar a imagem do estudante criada pela mídia".

A imprensa, muitas vezes de forma até involuntária (mas às vezes deliberada), é criadora por excelência de estereótipos. Com o passar do tempo, de tanto o modelo estereotipado ser imitado, finda por se tornar concreto. Da mesma forma que os órgãos de comunicação podem ser utilizados para opor resistência a tiranos e tiranias – o Leste europeu criou seus órgãos "underground", mimeografados, para expor a verdade ao povo, alguns dos quais com circulação até maior do que os oficiais – se prestam a perpetuar ditaduras.

Não é por acaso que quando se dá um golpe de Estado, os primeiros pontos a serem tomados pelos golpistas são as emissoras de rádio e televisão e as redações de jornais. Por que? Porque uma imprensa livre é a maior arma da sociedade contra tiranos e tiranias. A divulgação feita, em 19 de dezembro de 1984, pelo jornal "The Washington Post", acerca do objetivo da missão ultra-secreta da nave norte-americana reutilizável "Discovery", que seria lançada no espaço no dia 23 de janeiro de 1985, levantou, nos EUA, uma enorme polêmica sobre a liberdade de imprensa.

O Pentágono considerou a quebra de sigilo uma violação às normas de segurança nacional. O editor do "Post", Benjamin Bradley, repudiou a acusação, feita pelo próprio secretário de Defesa, Casper Weinberger, argumentando que o cidadão daquele país tinha todo o direito de saber sobre o programa do avião orbital, cuja missão era a de espionar o território da extinta União Soviética e cujas conseqüências poderiam levar as superpotências a outra séria crise. Quem estava certo, o governo ou o jornal? Óbvio que era o “Post”.

Recorde-se que foi uma série de reportagens do "The Washington Post" que levou à queda do presidente Richard Nixon, em 8 de agosto de 1974, que renunciou para não ter seu "impeachment" aprovado pelo Capitólio, depois do caso de espionagem ocorrido no edifício Watergate. São denúncias de tantos outros jornais de renome daquele país que têm levantado a opinião pública mundial contra os abusos cometidos por paranóicos sequiosos de poder, que violentam os direitos humanos nas mais variadas formas e diversos lugares da Terra, prendendo, expropriando bens, torturando, matando e difamando pessoas, geralmente impotentes para se defenderem.

O que seria do mundo sem uma imprensa livre? Os cidadãos sentir-se-iam inseguros até para sair de casa sem essa tribuna para denunciar as mazelas e a prepotência dos que se valem do poder público para promover interesses pessoais, a sociedade, inclusive, poderia até mesmo se desorganizar com os indivíduos sentindo-se ameaçados em sua integridade, criando leis próprias, calcadas apenas na força.

Não é mera coincidência o fato das maiores atrocidades e genocídios acontecerem onde a atuação dos órgãos de divulgação é restringida e controlada pelo Estado. Onde a imprensa é manietada e amordaçada e impedida de exercer a sua missão de informar e alertar a opinião pública. O mesmo meio com o qual se pode despertar a consciência das pessoas, porém, se mal empregado, tende a alienar os cidadãos. A televisão, pela sua instantaneidade, era, até não faz muito, veículo virtualmente imbatível em termos de ser o primeiro a dar a notícia, antes do advento da internet. Hoje é a rede mundial de computadores que é insuperável no quesito instantaneidade. Esse poder fantástico implica também em uma responsabilidade proporcional, que quase nunca fica clara a quem compete tratar do assunto.

O jornalista francês François Henri de Virieu, num ensaio publicado pelo "Caderno de Sábado", do "Jornal da Tarde", constatou: "...O sistema midiático, isto é, a televisão e todas as redes por cabo, fibras ópticas, feixes hertzianos ou satélites que fazem circular a informação, pesa cada vez mais em nossa vida política e social. Ninguém comanda verdadeiramente este conjunto. Não há mais cidadão Kane, pois as responsabilidades estão muito diluídas. Mas todas as nossas instituições são afetadas por ela". E como são... Hoje em dia um político não ganha mais eleições pela mensagem que emite, pelo programa de governo que propõe, mas pela imagem que transmite em suas aparições na TV. Isto ocorreu, por exemplo, nos Estados Unidos, com John Kennedy em relação a Richard Nixon. E repetiu-se com Ronald Reagan em seu confronto com Jimmy Carter, com George Bush (pai), com Bill Clinton, com George W. Bush e com Barak Obama.

A fartura de informação e, pior, além de tudo truncada, tende a conduzir a opinião pública, cada vez mais participante das decisões dos políticos, a terríveis equívocos na avaliação de crises. O norte-americano Daniel J. Boorstin observou a esse respeito: "A Revolução Russa de 1917 alimentou a euforia norte-americana com a deposição do regime opressivo do czar e a ascensão do governo popular num vasto território. O terror bolchevista e o regime totalitário stalinista que vieram depois fizeram-nos repensar as coisas. Os acontecimentos de 1917 teriam sido apenas uma guerra civil que substituiu os czares pelos 'comiczares'?"

 Portanto, é pertinente a crítica de Umberto Eco ao “sistema de celebridade”. Todos os meios de comunicação, sem exceção, para merecerem esse título e não se transformarem em meros panfletos ou porta-vozes de propaganda política do partido “x”, “y” ou “z”, deveriam se limitar a noticiar, com absoluto rigor, o que acontece, sem nenhuma concessão, mas sem fazer juízo de valor (função exclusiva de leitores, ouvintes, telespectadores ou internautas, dependendo do meio pelo qual as pessoas se informam). Não têm o direito de, proposital ou acidentalmente, deliberada ou fortuitamente, serem notícia ou a induzirem a acontecer. Credibilidade não se ganha de graça, mas se conquista no dia a dia.


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