Dona Flor e os dois
maridos
Pedro
J. Bondaczuk
O que é mais importante
para uma mulher “normal”: um marido boêmio, eternamente desempregado, beberrão,
jogador, mas, como se diz no popular, “bom de cama”,ou um parceiro totalmente
oposto, que seja calmo, equilibrado, responsável, bom provedor (desses que não
deixam faltar nada em casa) e ainda, de quebra, diligente poupador, contudo, na
hora do sexo... monótono, trivial, incompetente, desses que o fazem praticamente
por pura obrigação? A maioria, provavelmente, apontará o segundo, embora no
íntimo, sonhe com o primeiro. O ideal, claro, seria um que reunisse a
competência sexual do primeiro, mas as outras características todas do segundo.
Mas... nem todas conseguem alguém assim. Não posso jurar que seja a regra, mas
também não garanto que não seja.
Poucas, pouquíssimas,
raras, raríssimas mulheres conseguem concretizar esse desejo (ou fantasia?),
que Florípedes Paiva conseguiu, posto que de forma totalmente fora do mundo,
diria mágica. E quem é essa figura que teve a ventura, ou desventura (sabe-se
lá!) de conseguir essa façanha? É uma das personagens femininas realmente
inesquecíveis, criada pela pena inspirada de ninguém menos que Jorge Amado.
Refiro-me à protagonista do romance “Dona Flor e seus dois maridos”, datado de
1966, grande sucesso não somente literário, mas também do cinema (onde teve
várias versões), teatro e televisão.
Alguns podem encarar a
situação dessa protagonista como caso de bigamia. Mas nenhum juiz condenaria a
bígama pelo delito. Por que? Porque um dos dois “maridos” dela não passa de um
“fantasma”, de alguém que já morreu fisicamente, mas que, por se tratar de um
filho de Exu, seu espírito retorna para atormentar a saudosa viúva. No princípio,
é verdade, ela até que tenta resistir ao seu assédio. Mas... ao fim e ao cabo,
a mulher finda por se render aos instintos. Só ela, exclusivamente ela, pode
ver o parceiro malandro, boêmio e beberrão, mas “bom de cama”, morto. Vamos pôr
ordem nesta confusão que fiz. Florípedes Paiva era casada com Vadinho, um
sujeito que pai nenhum escolheria para ser seu genro.
Este, como adiantei,
gostava de tudo o que era errado e proibido, Detestava, claro, o trabalho. Era
beberrão, mulherengo, boêmio e voltava, invariavelmente para casa embriagado,
carregado por colegas de farra, sob apupos da criançada da rua. Era uma
vergonha! Não titubeava em se apossar das economias que a mulher fazia dando
aulas de culinária, na escola de sua propriedade chamada de “Sabor & Arte”.
E quando ela resistia e tentava evitar a pilhagem ao seu pecúlio, Vadinho não
relutava em dar-lhe algumas palmadas. Todavia, na cama... era insuperável.
Levava Flor às nuvens, em delírios de gozo. Essa vida desregrada do malandro,
no entanto, cobrou, como seria de se esperar, seu preço. O vagabundo contumaz,
beberrão irrecuperável e jogador compulsivo, sofreu, sem essa ou mais
aquela, súbito peripaco, e em pleno
carnaval de rua de Salvador. E... morreu..
Flor ficou
inconsolável. Apesar dos pesares, era apaixonadíssima pelo marido. Não tardou,
porém, para que sua beleza e sensualidade, seus modos discretos e suas muitas
virtudes, despertassem o interesse do farmacêutico Teodoro, que num piscar de
olhos, se descobriu fulminado de paixão pela desejável viúva. Em suma, depois
de cortejá-la, como era de praxe e de namorar com ela, de acordo com os
costumes das boas famílias, propôs-lhe casamento e... Flor aceitou. O novo
marido, todavia, era o oposto do anterior, para o bem e para o mal. Ao
contrário de Vadinho, Teodoro era pacato, religioso, gentil, responsável,
trabalhador e econômico. Ou seja, o tipo de homem capaz de dar estabilidade e
segurança a qualquer mulher. Só que... por ser de idade um pouco avançada e
bastante conservador, o farmacêutico não conseguia satisfazer sexualmente Dona
Flor e nem se preocupava com isso. Na verdade, nem desconfiava que ela
estivesse insatisfeita. E a comparação entre o marido morto e o novo, por parte
da mulçher, foi inevitável.
Embora tentasse não
pensar nisso, a viúva fogosa e saudável pensava cada vez mais em Vadinho. Até
que... subitamente este lhe aparece e a seduz. Mostra-se capaz de realizar as
mesmas coisas que fazia na cama quando estava vivo, até em presença, no mesmo
leito, de Teodoro, que não o vê. Flor hesita
entre se manter fiel ao novo marido ou ceder ao espírito do primeiro. O que
você, leitor, que eventualmente não tenha lido o livro, acha que ela fez? Isso
mesmo. Cedeu aos instintos. E manteve a bigamia, já que só ela e mais ninguém
tinha conhecimento disso.
Interessante é a
descrição que Jorge Amado faz dessa mulher tão “normal”, contrariando o
conceito de normalidade que muitos possam ter. "Pequena e rechonchuda, de
uma gordura sem banhas, a cor bronzeada de cabo-verde, os lisos cabelos tão
negros a ponto de parecerem azulados, olhos de requebro e os lábios grossos um
tanto abertos sobre os dentes alvos. Apetitosa, como costumava classificá-la o
próprio Vadinho em seus dias de ternura, raros talvez, porém inesquecíveis”. Eu
me apaixonaria por essa mulher, mas, ao contrário de Teodoro, buscaria
satisfazer todas suas fantasias e todos seus gostos eróticos. E você? Por tudo isso, Florípedes Paiva, ou
simplesmente Dona Flor, é uma dessas personagens femininas absolutamente
inesquecíveis, tão logo a venhamos a conhecer.
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