Friday, October 16, 2015

O passado não perdoa

Pedro J. Bondaczuk

A quarta personagem feminina inesquecível criada por Jorge Amado (de tantas outras que poderiam ser citadas), ao lado de Gabriela, de Tereza Batista e de Dona Flor, é Tieta. Como as anteriores, foi, também, interpretada por excelentes e belas atrizes, nas adaptações que o romance que protagonizou teve para o cinema e para a televisão, a exemplo, destaque-se, do que ocorreu com as outras três. Por meio dessa protagonista, o escritor confrontou dois mundos diferentes, em termos de mentalidade, de comportamento, de padrões morais e de formas como a mulher era (e em certa medida ainda é) encarada pela sociedade.

De um lado, está aquela “função” feminina tradicional, milenar, ainda viva em localidades mais afastadas deste país de dimensões continentais, que lhe é atribuída. Refiro-me ao papel específico, exclusivo, de mãe de família, de dona de casa, de esposa dócil e submissa ao marido. No outro extremo, todavia, estão mulheres que já conquistaram e seguem conquistando crescentes espaços na sociedade, em busca da igualdade entre gêneros, inclusive no aspecto sexual, como conseqüência do advento e da vulgarização da pílula anticoncepcional, situação característica, sobretudo, das grandes metrópoles. Como se vê, são dois mundos bem distintos.

A trajetória da complexa personagem é traçada por Jorge Amado, com a maestria que sempre o caracterizou, no extenso romance “Tieta do Agreste”, publicado em 17 de agosto de 1977. A história começa como tantas outras que ocorrem por estes grotões mais distantes e conservadores deste imenso País. Trata do caso de uma garota, ainda adolescente, que é apresentada às delícias do sexo fora do casamento e... gosta. Todavia, tem que arcar com as conseqüências. É expulsa de casa pelo pai, que não admite isso em hipótese nenhuma e sequer a reconhece mais como filha. Quantas garotas já não passaram por experiência como essa e não tiveram tratamentos iguais ou parecidos?! Muitas! Muitíssimas! Tantas que é impossível de sequer estimar quantas foram ou são. Invariavelmente, o destino dessas moçoilas é o de irem parar em algum dos tantos bordéis existentes por aí, onde se desgastam, se consomem e se destroem. Ou são destruídas. E raríssimas conseguem mudar de vida e voltar a serem aceitas pela sociedade. Não faço aqui juízo de valor. Literatura e moral são compartimentos distintos.

Tieta, adolescente de 16 anos de idade, bela, desejável e fogosa, havia sido expulsa de casa pelo pai, Zé Esteves, machista renitente e inveterado, por ter tido relações sexuais com um rapaz da localidade. Foi denunciada pela irmã, Perpétua. Recebeu uma surra de cajado, daquelas que ninguém esquece, do velho turrão e foi escorraçada de casa, sem chances de defesa e sem perdão. Para não se tornar objeto de escárnio dos moradores de Santana do Agreste, vai para longe, muito longe dali, para São Paulo. Passado mais de um quarto de século da expulsão, Tieta regressa à terra natal. Volta, aparentemente, por cima. Apresenta-se como uma viúva de um grande empresário paulistano, de um comendador, rica e generosa. À sua volta encontra típicos representantes do interior baiano, lutando pela sobrevivência, defendendo ou resistindo a preconceitos, almejando pequenas ambições. Eles compõem um painel vivo dos conflitos e consequências provincianos que antecedem a chegada de sinais do progresso.

Tudo caminhava bem, até a verdade sobre a condição de Tieta ser descoberta. Afinal, salvo exceções, o passado não perdoa. No caso dela, não perdoou. Ela, só é aceita pelos moradores de Santana do Agreste enquanto finge ser o que não é, ou seja, a viúva rica de um empresário paulistano. Quando sua verdadeira identidade, e a forma como enriqueceu, são descobertas, foi um Deus nos acuda. Tieta havia feito fortuna, em São Paulo, às custas da “profissão mais antiga do mundo”. Primeiro, havia sido prostituta e, depois, dona de bordel. Isso ninguém aceita em sua cidade natal. Assim, mais uma vez rejeitada, ela retorna ao “Sul maravilha” para retomar sua vida naquele outro mundo, tão diferente do de sua terra natal, onde não é repudiada.

Jorge Amado descreve com bastante realismo, de forma nua e crua, a primeira experiência sexual de Tieta, a que iria mudar a vida dela para sempre. Relata: "O homem a derruba sobre as folhas dos coqueiros, suspende-lhe a saia, arranca-lhe a calçola, trapo sujo. De joelhos sobre ela, enterra o chapéu na areia para que não voe e se perca, abre a braguilha. A menina o deixa fazer e quer que ele o faça". 

Em outro trecho, o escritor traça paralelo entre os tais dois mundos distintos a que me referi:      "O mundo de Agreste, aparentemente simples e pacífico, revela-se mais difícil e confuso do que o mal afamado universo do meretrício onde ela se movimenta entre putas, rufiões, cáftens, gigolôs, patroas de rendevus, desde a partida na boleia do caminhão há vinte e seis anos. Mais fácil defender-se e comandar no Refúgio dos Lordes. Lá, os sentimentos, como os corpos, estão expostos. Aqui, a cada passo, ela tropeça em simulação, engano e falsidade; ninguém diz tudo o que pensa e demonstra por inteiro seus desígnios; todos encobrem algo por interesse, medo ou pobreza. Mundo de fingimento e hipocrisia, em acirrada luta por ambições tacanhas, minguados interesses".

Quando expulsa de Santana do Agreste, Tieta era mais “cabritinha” (como o pai a chamou), solta, desbocada e, principalmente, como adolescente que era, rebelde. Em sua volta, 26 anos depois, com o firme propósito de se vingar de toda a hipocrisia da cidade, era experiente e sábia, tendo aprendido com a vida, depois de comer o pão que o diabo amassou. Ainda assim... Não conseguiu ser aceita. Aquele não era mais seu mundo, embora tenha nascido nele. Não há como negar que Tieta é mais uma das tantas personagens femininas inesquecíveis do rico filão de tipos do universo da ficção.


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