A inesquecível menina
que roubava livros
Pedro
J. Bondaczuk
O jovem escritor
australiano (completou 40 anos de idade em 23 de junho de 2015), Markus Frank
Zusak tornou-se best-seller mundial aos 30, quando lançou o seu então quarto
romance “A menina que roubava livros”. Celebrizou-se nem tanto pelo enredo (que
é excelente), mas, principalmente, pela “criação” de uma das personagens
femininas que ninguém que tenha lido o livro esqueceu nem conseguirá esquecer.
Bem, na verdade, ele propriamente não a “criou”. Baseou o perfil da fascinante
protagonista em pessoa real, de carne e osso, que existiu (e que, aliás, foi a
responsável por “sua” existência): sua mãe. Refiro-me a Liesel Meminger, criada
por pais adotivos, depois que sua mãe biológica sepultou seu irmão caçula e
resolveu, por motivo que não ficou muito claro, entregar a garotinha aos
cuidados de outro casal, para evitar que tivesse o mesmo destino.
Tratei desse livro há
alguns anos (foi lançado em 2005, mas no Brasil foi publicado apenas em 2007,
pela Editora Intrínseca), em uma crônica, que não consegui localizar em meu
caótico arquivo eletrônico. Portanto, que o leitor me perdoe se eu for
repetitivo nestas considerações. Os mais mórbidos (que, convenhamos, não
faltam) argumentarão que a personagem central do romance não é, propriamente,
Liesel, mas a Morte, á qual Zusak empresta corpo e voz e faz dela a narradora
da história. E eles estão (mas ao mesmo tempo não estão), certos. Afinal,
óbvio, não foi o escritor que “criou” essa entidade (chamemo-la assim), que
cumpre seu papel natural de renovadora de todas as espécies vivas, suprimindo
os mais velhos ou mais frágeis de cada uma para dar espaço aos mais novos e
mais fortes. Porém, ela é personagem do livro. E, por mais que a desejemos
esquecer, ela sempre foi, é e será “inesquecível”. Mas... deixa pra lá!
É fato que o jovem
escritor australiano inovou nesse aspecto. Nunca vi, em livro algum, de
qualquer ficcionista, algo sequer parecido, ou seja, a Morte ser alçada à
condição de personagem, como se fosse uma pessoa. Conforme Zusak, o romance
nasceu quase que por “geração espontânea”. Ele cresceu ouvindo a mãe contar
histórias da sua infância, numa Alemanha alinhada (salvo raras exceções) com o
nazismo. Entre essas narrativas estavam as do bombardeio a Munique, as de
judeus marchando pela pequena cidade em que ela morava rumo aos campos de
concentração, onde a imensa maioria, literalmente, viraria cinzas e vai por aí
afora. Embora horrorizado com o que ouvia, tinha íntima convicção que tudo
aquilo eram coisas que queria um dia registrar em livro. E registrou, com
talento e competência. A mãe sobreviveu à guerra e emigrou com o marido para a
Austrália, onde Zusak nasceu e vive.
O primeiro livro que
Liesel “roubou” foi no cemitério, onde o irmãozinho, recém-morto, estava sendo
sepultado. Tecnicamente, nem se tratou de um roubo. A menina limitou-se a
recolher do chão o tal livreto que havia caído do bolso do coveiro. Mas não o
devolveu ao dono. Guardou-o para ter uma lembrança do irmãozinho morto,
porquanto sequer ainda sabia ler. Aos poucos, todavia, foi aprendendo a juntar
as letras, em identificar as palavras e em decifrar o conteúdo dos livros. E
foi incorporando esses “tesouros”, mais e mais, ao seu acervo pessoal. O fato
de “roubá-los” emprestava-lhe emoção especial e funcionava mais como uma
espécie de catarse para os horrores que testemunhava e que não compreendia
muito bem.
A mãe adotiva da menina
é apresentada como mulher rabugenta, resmungona e rigorosa. Todavia... em
momentos especiais, quando as circunstâncias assim exigiam, revelava-se, na
verdade, dotada de um “coração de manteiga”: compreensiva e observadora. Liesel
vivia em uma casa pobre e a família que a abrigou enfrentava muitas
dificuldades, como ademais todas as pessoas simples, daqueles “tempos bicudos”,
tinham que tentar superar no interior da Alemanha. O pai adotivo, pintor de
paredes e músico nas horas vagas, era uma espécie de herói silencioso para a
menina. Era amoroso, amável e admirado por ela.
O escritor Leandro
Borges, resenhando o livro de Zusak, observa a certa altura: “A situação é
triste: as dificuldades da vida de uma criança pobre que não entende como as
coisas são. Então sonha com um mundo, vive em outro (na maioria das vezes,
cruel), e tenta agir de alguma forma entre os dois”. Uma das passagens do livro
que mais se fixaram em minha mente, é a do bombardeio da cidadezinha em que
Liesel morava por parte da aviação aliada. Diversas pessoas reuniram-se no
porão de uma casa para se protegerem das bombas. Todas, claro, estavam com
muito medo, apavoradas, sem quase poderem se controlar.
Agarravam-se, umas às
outras e ao que consideravam seus bens mais preciosos, como se fosse possível protegê-los. O ruído das explosões era ensurdecedor. As
crianças choravam aterrorizadas e em desespero. O ambiente era de pânico e de
caos. Foi então que Liesel começou a ler, em voz alta, um de seus livros, como
se nada estivesse acontecendo. Zusak narra assim esse episódio: “Durante pelo
menos vinte minutos foi entregando a história. As crianças menores se acalmaram
com sua voz, enquanto todos os outros tinham visões do assobiador fugindo da
cena do crime. Não Liesel. A menina que roubava livros via apenas a mecânica
das palavras – seus corpos presos ao papel, achatados para lhe permitir
caminhar sobre eles”.
Que magnífico é não só
esse trecho, mas todo o romance desse jovem escritor!!! Não por acaso, já há,
até, quem fale num possível Prêmio Nobel de Literatura para Markus Zusak. Se
lhe for outorgado, estará em muito boas mãos, sem qualquer exagero. Como esquecer uma narrativa tão brilhante e
poética de um assunto que na verdade é escabroso e trágico, tanto que é feita
pela “Morte”?! Como esquecer personagem feminina, como esta, como Liesel
Meminger que, ademais, tinha paixão por algo que, para nós, que vivemos de
Literatura, é uma espécie de “Santo Graal”?!!!
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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