Personagem com o selo
da verossimilhança
Pedro
J. Bondaczuk
O escritor sagaz – e
claro, talentoso e preparado e não mero “aprendiz de feiticeiro” – não raro
recorre à experiência pessoal, a fatos que realmente ocorreram em sua vida,
para brindar os leitores com magníficas obras-primas que, com o tempo,
tornam-se, até, clássicos da Literatura. Se não quiser reproduzir literalmente
tais acontecimentos, nem os respectivos protagonistas (o que pode fazê-lo, se
preferir), basta recorrer à fantasia, sem carregar nas tintas. Pode mudar a
descrição dos personagens, por exemplo, para que os verdadeiros não se
identifiquem neles, alterar desfechos, mudar cenários, mexer na cronologia,
enfim, descaracterizar o que aconteceu, e viveu, sem que com isso a história se
torne menos interessante, ou desinteressante. Em geral, ocorre o contrário. O
escritor talentoso faz dessa experiência pessoal algo não somente de supremo
interesse para terceiros, como inesquecível, dada a semelhança com a realidade.
Muitos grandes romances nascem dessa forma.
Um dos livros, com as
características que citei, que mais aprecio, é “Adeus às armas”, de Ernest
Hemmingway, publicado em 1929 (foi a terceira obra de ficção do escritor), cujo
título foi inspirado em um poema do poeta inglês do século XVI, George Peele.
Entre as edições lançadas entre nós, destaco a da Bertrand Brasil, realmente
primorosa. Embora o enredo tenha como pano de fundo a Primeira Guerra Mundial,
encaro o romance como primorosa e pungente história de amor. Ernest Hemmingway
sempre foi tido, e havido (com razão), como escritor “machista”, não muito dado
a sentimentos, considerado, sobretudo, como homem de ação. Afinal, fez safáris
na África, participou da Guerra Civil Espanhola, foi espião em Cuba e
correspondente na Europa durante a Segunda Guerra Mundial etc.etc.etc. E
transportou todas essas aventuras que viveu para seus personagens.
Pois foi justamente
esse homem rude, que valorizava tanto o heroísmo, os atos de bravura, os riscos
e a ação que nos legou uma das mais belas histórias de amor do século XX,
talvez, até, de todos os tempos. E dela emerge uma das personagens femininas
realmente inesquecíveis da ficção. Refiro-me à enfermeira Catherine Barkley,
grande paixão do oficial norte-americano Frederic Henry, que se alistara como
voluntário no Exército italiano. Ferido na perna quando tentava socorrer um
soldado na batalha, vai parar num hospital militar, onde então encontra o
grande amor de sua vida. O casal se apaixona, vive belo affaire amoroso, mas...
Não tem o tão esperado “happy end” que o leitor tanto espera. Catherine morre ao
dar a luz ao filho dos dois.
É aí que entra o fator
que citei acima, ou seja, o da experiência pessoal como estrutura, esqueleto,
arcabouço de um grande romance. Com exceção dos nomes e do desfecho, a história
que Hemingway viveu, ainda mal saído da adolescência, é praticamente a mesma de
“Adeus às armas”. Aventureiro como era, no vigor da juventude, aos 19 anos de
idade, tenta se alistar no exército do seu país. É recusado. Não desiste,
todavia. Larga o emprego como repórter no jornal “Kansas City Star” (era
jornalista precoce, mas aplicado e observador) para tornar-se motorista de
ambulância no front italiano como voluntário da Cruz Vermelha (a exemplo de seu
personagem, Frederic Henry).
Sua paixão, na vida
real, foi, também, uma enfermeira: Agnes von Kurowsky. A exemplo de Catherine,
ela tratou dos ferimentos que o escritor recebeu em campo de batalha. Na
história verdadeira, sua “musa”, por razões nunca explicadas, não aceitou
casar-se com ele. Provavelmente, o motivo foi sua juventude e as incertezas naturais
de tempos de guerra. Vá se saber! Em “Adeus às armas” (no livro), Catherine
morreu. Na versão cinematográfica do romance, porém, há um final feliz. Não sei
se esse desfecho agradou o escritor. Presumo que não. No início de 1919, Ernest
Hemingway volta para Oak Park, no Illinois, sua cidade natal. A imprensa local
recebe-o como um herói. Isso a despeito
de ter permanecido, somente, um único mês como motorista de ambulância da Cruz
Vermelha. Um dos jornais de Oak Park chegou mesmo a estampar esta manchete: “Herói de 19 anos
volta para casa com 227 ferimentos e procura emprego”.
Em janeiro de 1929, dez
anos e um dia depois de seu retorno à terra natal, o escritor finalmente
conclui “Adeus às Armas”. Suas emoções podem ser resumidas nesta fala do personagem
Frederic Henry:“Quando se vai para a guerra, sente-se uma grande sensação de imortalidade. Os outros podem morrer, não
você… Então, quando você é ferido pela
primeira vez, todas as ilusões desaparecem e você sabe as coisas horríveis que
podem acontecer contigo”. Para os críticos, “Adeus às armas” está longe de ser
o melhor livro de Hemmingway. O que o consagrou de vez foi “O velho e o mar”,
que lhe valeu o Prêmio Pulitzer de 1953 e certamente contribuiu decisivamente
para, um ano depois, em 1954, fosse consagrado com o Prêmio Nobel de
Literatura.
Embora eu tenha falado
pouco de Catherine Barkley, ela é, e sempre foi, para mim, personagem feminina
inesquecível. É verdade que talvez o fato de eu ter lido “Adeus às armas” no
início da adolescência, em 1957, quando mal completara os catorze anos, tenha
me influenciado para considerá-la assim. E você, paciente leitor (caso tenha
lido o romance, claro) o que acha da protagonista? Mesmo os que não gostam de
Hemmingway têm que admitir, no entanto, que se trata de uma história bonita e
singela, escrita em um estilo ágil, de parágrafos curtos, de leitura fácil e
agradável e que, sobretudo, tem o mérito, tem o “selo” da verossimilhança, por
ser baseada, óbvio, em acontecimentos reais.
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