Saturday, October 17, 2015

Renúncia como suprema prova de amor

Pedro J. Bondaczuk

A renúncia – a um cargo de qualquer natureza que tenhamos condições de exercer bem, ou a uma vocação inequívoca com as qual poderíamos nos realizar ou a uma pessoa que amemos extremadamente e de cuja correspondência tenhamos plena convicção – é um sintoma de fraqueza, manifestação de burrice ou ato de covardia, como muitos afirmam sem pestanejar (e sem refletir)? Da minha parte responderia: depende. Do que? Das tais das circunstâncias, tão bem tratadas pelo filósofo espanhol José Ortega y Gasset, que volta e meia trago à baila. Quando nos referimos a renúncia de um amor, as opiniões se dividem. Uns acham que se deva lutar por ele sempre, às últimas conseqüências e não desistir dele jamais. Outros entendem que renunciar é não apenas válido, dependendo das circunstâncias, como nobre, se isso for o melhor para a pessoa amada. Insisto, porém, na minha opinião original: depende.

A escritora Simone de Beauvoir, por exemplo, escreveu: “Renunciar ao amor parece-me tão insensato como desinteressarmo-nos da saúde porque acreditamos na eternidade”. Como contraponto, porém, cito trecho da memorável crônica do saudoso escritor Artur da Távola, intitulada “Amor é enigma?”, em cujos primeiros parágrafos escreveu: “Optar é renunciar. Entregar-se, por exemplo, a um amor é abandonar outros. E, do que se renuncia e abandona, pode provir, depois arrependimento. Afastar-se de um amor, ainda que, opção feita por lúcidas razões, pode gerar, adiante, a frustração pelo que se deixou de viver. Os casos de amor vivem rondados por frustração ou arrependimento. Não o amor, que é íntegro, irrefutável, cristalino e indubitável: mas os amantes seus portadores. Quase sempre o tamanho do amor é maior que o dos amantes”.

E por que trago hoje esse assunto à baila? Porque uma das personagens femininas inesquecíveis da literatura mundial conquistou (e segue conquistando) corações e mentes de leitores mundo afora exatamente por amar tanto a um homem que renunciou de ficar ao seu lado, por entender que se o fizesse, apenas o prejudicaria. Refiro-me a Margarita Gautier, a protagonista do romance “A dama das camélias”, de Alexandre Dumas Filho, celebrizada tanto no teatro, com suas inúmeras montagens, quanto no cinema. Entre 1906 e 1980, por exemplo, essa dramática história já foi tratada em doze filmes, além de dezenas de adaptações para a televisão. Inspirou, até mesmo, uma ópera famosa, de autoria de Giuseppe Verdi, no caso “La Traviata”, na qual foi mudado, apenas, o nome de Margarita Gautier para Violetta Valéry.

Li esse romance, pela primeira vez, há exatos 59 anos, em 1956. Reli-o, dia desses, até para redigir estes comentários e o livro despertou-me, agora, a mesmíssima emoção de quando eu era adolescente. O curioso é que ouço, vira e mexe, em conversa com amigos, que Dumas Filho exagerou na dose ao criar essa personagem; que ela não é verossímil; que não existe mulher alguma que aja, tenha agido ou possa agir como Margarita e vai por aí afora. Atribuo essas observações a certa desinformação de quem as faz. Não existe alguém como “a dama das camélias”?! Pelo menos já existiu. O romance em questão, para quem não sabe, é, em boa parte, autobiográfico. Alexandre Dumas Filho viveu um caso de amor bastante parecido com o que descreve, com mudanças aqui e ali, mas bem próximo do  que relatou. Margarita Gautier existiu, sim, mas seu nome de verdade, o de batismo, era Marie Dupleissis. Tratou-se de conhecida cortesã parisiense.

O escritor, aliás, conhecia como poucos os meandros de amores extraconjugais. Afinal, era fruto de um deles, por ser filho ilegítimo (que o povo chamava, sem nenhum pudor, de bastardo) do então já famoso romancista Alexandre Dumas, o autor de “Os três mosqueteiros”. Custou para ser aceito pelo pai. Pior ainda, foi batalha inglória ser aceito pela sociedade. Imaginem o quanto não ouviu sobre sua origem, quantos gracejos e ofensas gratuitas, principalmente insultos voltados à sua mãe!!! Eu imagino e não posso nem de longe cogitar sobre qual seria minha reação caso estivesse em situação semelhante. No mínimo, desafiaria os ofensores para um duelo, o que era comum na época, e possivelmente (ou provavelmente) seria ferido de morte por algum dos desafetos.

Para quem não se lembra, ou não leu o livro (nem assistiu à peça e a nenhuma versão cinematográfica) explico que a história é ambientada na Paris de 1848, que vivia mais uma de suas tantas revoluções O romance é narrado, em várias partes, por uma terceira pessoa e após a morte de Margarita Gautier, conhecida como a “dama das camélias” (por razões óbvias), vitimada pela tuberculose. Trata do seu “affaire”, com o jovem estudante de Direito Armando Duval. O moço integrava uma família aristocrática de Paris. Apaixona-se, todavia, pela cortesã Margarita, a despeito da intolerância de sua família e do imenso preconceito social e fazia mirabolantes planos para o futuro ao seu lado. Todavia...  esta renuncia a esse amor, para desespero do rapaz, convencida que era o melhor que poderia fazer para garantir um futuro melhor para seu amado. Fica claro que Margarita renunciou a Duval não porque não o amasse ou que amasse de forma insuficiente. Fê-lo exatamente pelo contrário.

Com todo o respeito ao autor de “Os três mosqueteiros”, mas o filho superou, em muito, o pai, e com um único livro, sobretudo pela coragem que teve de fazer de sua experiência pessoal uma obra-prima literária e de assim nos legar uma das personagens femininas realmente inesquecíveis da literatura mundial de ficção. Ensinou-nos, sobretudo, que dependendo das circunstâncias, a renúncia, volta e meia, pode ser (e de fato é) suprema prova de amor.


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