Renúncia como suprema
prova de amor
Pedro
J. Bondaczuk
A renúncia – a um cargo
de qualquer natureza que tenhamos condições de exercer bem, ou a uma vocação
inequívoca com as qual poderíamos nos realizar ou a uma pessoa que amemos
extremadamente e de cuja correspondência tenhamos plena convicção – é um sintoma
de fraqueza, manifestação de burrice ou ato de covardia, como muitos afirmam
sem pestanejar (e sem refletir)? Da minha parte responderia: depende. Do que?
Das tais das circunstâncias, tão bem tratadas pelo filósofo espanhol José
Ortega y Gasset, que volta e meia trago à baila. Quando nos referimos a
renúncia de um amor, as opiniões se dividem. Uns acham que se deva lutar por
ele sempre, às últimas conseqüências e não desistir dele jamais. Outros
entendem que renunciar é não apenas válido, dependendo das circunstâncias, como
nobre, se isso for o melhor para a pessoa amada. Insisto, porém, na minha
opinião original: depende.
A escritora Simone de
Beauvoir, por exemplo, escreveu: “Renunciar ao amor parece-me tão insensato
como desinteressarmo-nos da saúde porque acreditamos na eternidade”. Como
contraponto, porém, cito trecho da memorável crônica do saudoso escritor Artur
da Távola, intitulada “Amor é enigma?”, em cujos primeiros parágrafos escreveu:
“Optar é renunciar. Entregar-se, por exemplo, a um amor é abandonar outros. E,
do que se renuncia e abandona, pode provir, depois arrependimento. Afastar-se
de um amor, ainda que, opção feita por lúcidas razões, pode gerar, adiante, a
frustração pelo que se deixou de viver. Os casos de amor vivem rondados por
frustração ou arrependimento. Não o amor, que é íntegro, irrefutável,
cristalino e indubitável: mas os amantes seus portadores. Quase sempre o
tamanho do amor é maior que o dos amantes”.
E por que trago hoje
esse assunto à baila? Porque uma das personagens femininas inesquecíveis da
literatura mundial conquistou (e segue conquistando) corações e mentes de
leitores mundo afora exatamente por amar tanto a um homem que renunciou de
ficar ao seu lado, por entender que se o fizesse, apenas o prejudicaria.
Refiro-me a Margarita Gautier, a protagonista do romance “A dama das camélias”,
de Alexandre Dumas Filho, celebrizada tanto no teatro, com suas inúmeras
montagens, quanto no cinema. Entre 1906 e 1980, por exemplo, essa dramática
história já foi tratada em doze filmes, além de dezenas de adaptações para a
televisão. Inspirou, até mesmo, uma ópera famosa, de autoria de Giuseppe Verdi,
no caso “La Traviata”, na qual foi mudado, apenas, o nome de Margarita Gautier
para Violetta Valéry.
Li esse romance, pela
primeira vez, há exatos 59 anos, em 1956. Reli-o, dia desses, até para redigir
estes comentários e o livro despertou-me, agora, a mesmíssima emoção de quando
eu era adolescente. O curioso é que ouço, vira e mexe, em conversa com amigos,
que Dumas Filho exagerou na dose ao criar essa personagem; que ela não é
verossímil; que não existe mulher alguma que aja, tenha agido ou possa agir
como Margarita e vai por aí afora. Atribuo essas observações a certa
desinformação de quem as faz. Não existe alguém como “a dama das camélias”?!
Pelo menos já existiu. O romance em questão, para quem não sabe, é, em boa
parte, autobiográfico. Alexandre Dumas Filho viveu um caso de amor bastante
parecido com o que descreve, com mudanças aqui e ali, mas bem próximo do que relatou. Margarita Gautier existiu, sim,
mas seu nome de verdade, o de batismo, era Marie Dupleissis. Tratou-se de
conhecida cortesã parisiense.
O escritor, aliás,
conhecia como poucos os meandros de amores extraconjugais. Afinal, era fruto de
um deles, por ser filho ilegítimo (que o povo chamava, sem nenhum pudor, de
bastardo) do então já famoso romancista Alexandre Dumas, o autor de “Os três
mosqueteiros”. Custou para ser aceito pelo pai. Pior ainda, foi batalha
inglória ser aceito pela sociedade. Imaginem o quanto não ouviu sobre sua
origem, quantos gracejos e ofensas gratuitas, principalmente insultos voltados
à sua mãe!!! Eu imagino e não posso nem de longe cogitar sobre qual seria minha
reação caso estivesse em situação semelhante. No mínimo, desafiaria os
ofensores para um duelo, o que era comum na época, e possivelmente (ou
provavelmente) seria ferido de morte por algum dos desafetos.
Para quem não se
lembra, ou não leu o livro (nem assistiu à peça e a nenhuma versão
cinematográfica) explico que a história é ambientada na Paris de 1848, que
vivia mais uma de suas tantas revoluções O romance é narrado, em várias partes,
por uma terceira pessoa e após a morte de Margarita Gautier, conhecida como a
“dama das camélias” (por razões óbvias), vitimada pela tuberculose. Trata do
seu “affaire”, com o jovem estudante de Direito Armando Duval. O moço integrava
uma família aristocrática de Paris. Apaixona-se, todavia, pela cortesã
Margarita, a despeito da intolerância de sua família e do imenso preconceito
social e fazia mirabolantes planos para o futuro ao seu lado. Todavia... esta renuncia a esse amor, para desespero do
rapaz, convencida que era o melhor que poderia fazer para garantir um futuro
melhor para seu amado. Fica claro que Margarita renunciou a Duval não porque
não o amasse ou que amasse de forma insuficiente. Fê-lo exatamente pelo
contrário.
Com todo o respeito ao
autor de “Os três mosqueteiros”, mas o filho superou, em muito, o pai, e com um
único livro, sobretudo pela coragem que teve de fazer de sua experiência pessoal
uma obra-prima literária e de assim nos legar uma das personagens femininas
realmente inesquecíveis da literatura mundial de ficção. Ensinou-nos,
sobretudo, que dependendo das circunstâncias, a renúncia, volta e meia, pode
ser (e de fato é) suprema prova de amor.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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