Friday, October 09, 2015

A infiel, mas fidelíssima, personagem de Hawthorne

Pedro J. Bondaczuk

O escritor Nathaniel Hawthorne, que nasceu e morreu no século XIX, com apenas 60 anos de idade, é, ainda hoje, um dos grandes expoentes da Literatura norte-americana. Houvesse já, na época em que viveu e atuou, o Prêmio Nobel de Literatura (que não havia ainda), certamente seria premiado, a despeito de certa falta de critério na atribuição dessa importante premiação. Hawthorne é tido e havido, por estudiosos e por críticos literários, como o primeiro grande ficcionista dos Estados Unidos. E olhem que a Literatura norte-americana produziu, e segue produzindo, escritores excepcionais. Mas ele é, com todos os méritos, se não o maior (muitos acham que sim) um dos maiores contistas de seu país. Um dos seus temas centrais, que tratou com extrema perícia, é o puritanismo norte-americano, assunto delicado que muita gente boa fez questão de ignorar, para evitar inimizades e coisas piores.

Um dos romances mais citados de Natanhiel Hawthorne é “A letra escarlate”. Ele foi popularizado pelo cinema, numa versão dirigida por Rolland Joffé, rodada em 1995, que teve Demi Moore no principal papel feminino. Aliás, o filme é muitíssimo mais conhecido do que o livro. Mas não importa. O importante é que esse magnífico escritor nunca entrou na longuíssima galeria dos “esquecidos”. E por que trago à baila tanto Natanhiel Hawthorne quanto seu famoso romance “A letra escarlate”? Por causa dos personagens que criou. E, claro, pelo seu original enredo. O escritor trata de um assunto que sempre foi (e ainda é) tabu e que era muito mais no tempo e na sociedade puritana em que vivia: o adultério.

O que me chamou a atenção, em particular, foi Hester Prynne, a personagem feminina da história, que se torna figura inesquecível para quem lê o livro ou assiste ao filme, por mais insensível ou distraído que possa ser. Essa mulher, aparentemente frágil, mostra uma força moral inusitada ao enfrentar as conseqüências de um erro que cometeu. Fez sexo com o reverendo Dimmesdale, figura tida e havida como impoluta, de moral ilibada, traindo, portanto, o marido. Desse relacionamento nasceu Pearl, filha bastarda, que era prova incontestável de seu delito. Descoberta, e denunciada, foi obrigada pela justiça a andar por onde quer que fosse com uma letra A (de adúltera) no peito, para que todos da cidade soubessem do pecado que cometeu.

Tida e havida como infiel – e o adultério não permitia que negasse que o tenha sido – Hester, contudo, por paradoxal que pareça, deu uma prova inquestionável de fidelidade, que ninguém se dispos a reconhecer e admitir. Resolveu não revelar quem fora o pai de sua filha bastarda, arcando sozinha com todas as conseqüências do adultério. Além disso, comprometeu-se não dizer para ninguém qual era a nova identidade assumida pelo marido, que mudou de nome para evitar chacotas de toda uma cidade. Este, todavia, nunca abriu mão do desejo de vingança. O pai de Pearl, o moralista e santarrão reverendo Dimmesdale, finda por admitir, e em público, o adultério e a consequente paternidade, antes de morrer, frustrando os planos do marido traído de se vingar do adúltero. Hester, ao final e ao cabo, termina bem a história, sem que para isso, todavia, precisasse quebrar a promessa de sigilo que fez aos dois homens: ao traidor e ao traído. No romance, como se vê, a culpa, as crenças e a moralidade são colocadas em cheque.

Sabem onde a história se passa? Em Salem, cidade da Nova Inglaterra – aliás a terra natal de Hawthorne, onde nasceu em 4 de julho de 1804 – famosa por outro episódio, esse verídico, sobre o qual muito se falou e ainda, volta e meia, se tem falado. O leitor não se lembra qual foi esse caso? Foi esse mesmo, o das “feiticeiras” de Salem, em que vinte mulheres inocentes foram condenadas á morte por alegada prática de “feitiçaria”, numa explosão coletiva de ódio, de intolerância religiosa, de fanatismo e de estupidez humana. E Hawthorne teve algo a ver com isso? Indiretamente, sim. Mas só indiretamente (de forma remotíssima). Por que? Porque o escritor era bisneto de um dos juízes que cometeram aquela barbaridade jurídica, aquela manifestação estúpida de superstição levada ao extremo, ao paroxismo homicida.

Claro que não teve nada a ver com isso, porquanto nasceu muitos anos após sua ocorrência. E tanto não teve, que centrou a temática da maioria das histórias que criou nos excessos e desmandos do puritanismo, transformado no mais explícito e condenável fanatismo. Influenciado pelo meio em que nasceu, e em que foi criado, Hawthorne sempre teve a moral como assunto central de seus trabalhos literários. Conferiu-lhe, aliás, ares de única salvaguarda contra a crueldade humana, que não titubeou em apontar e, implicitamente, em condenar. “A letra escarlate”, que é  uma mistura de alegoria e livro histórico, é considerado, por muitos críticos, como o maior romance da literatura norte-americana. Eu não diria tanto. Mas do meu ponto de vista, tanto o escritor, quanto essa obra-prima que produziu – sobretudo os personagens que criou, com destaque para a protagonista feminina Hester Prynne – são, simplesmente, inesquecíveis.


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