Tuesday, October 27, 2015

A trágica “Julieta” dos trópicos

Pedro J. Bondaczuk

A Literatura brasileira é, sem favor algum,  uma das mais ricas e expressivas do mundo. Sempre que afirmo isso, sou criticado e tachado de “ufanista”. Por quem? Por pessoas que se acham “entendidas” no assunto, mas que não são. Creiam-me, não sou nenhum Conde Afonso Celso contemporâneo. Sou, sim, estudioso das nossas letras e dotado, sim, de um espírito crítico, mas que tento exercitar com equilíbrio. Porém despido de preconceito, tão comum aos tantos que consideram que tudo o que é nosso é inferior, é defeituoso e é incompleto. Depois dos 7 a 1 para a Alemanha, até as conquistas do nosso futebol passaram a ser desprezadas, como se fossem coisas triviais, de somenos. Para estes, só nossos fracassos contam.

A Literatura brasileira não é inferior a nenhuma outra. É, isso sim, subvalorizada. E tal subvalorização se dá não no exterior, é mister que se frise (na Europa ou nos Estados Unidos), mas justamente, onde não deveria ser e que se esperava que fosse  cultivada, com afinco e com cuidado, mas que não é: no próprio Brasil. Por que isso acontece? Por uma série de razões que pretendo, oportunamente, trazer à baila. Estas considerações vêm a propósito de um dos nossos escritores mais criativos e argutos, no entanto pouco conhecido, a despeito de haver produzido uma obra consistente e rica, entre ensaios, memórias e romances e ter sido um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. Refiro-me ao Visconde de Taunay (Alfredo Maria Adriano d’Escragnole Taunay), autor de onze livros, dentre os quais essa obra-prima da ficção que é “Inocência”.

E por que destaco essa obra, em particular, das outras que ele produziu, todas excelentes e dignas de figurar nas melhores e mais seletas bibliotecas? Porque dela emerge uma das personagens femininas realmente inesquecíveis: justamente a que dá título ao romance. O livro, aliás, é um marco na Literatura brasileira, por se constituir numa transição entre o Romantismo e o Naturalismo. A história se passa no sertão do então vasto Estado do Mato Grosso, antes da criação do Mato Grosso do Sul. O foco da ação é a cidade de Paranaíba. Comparo (guardadas as devidas proporções) “Inocência” a “Grande Sertão, veredas”, de Guimarães Rosa. Taunay, a exemplo do escritor mineiro, descreve, com enorme precisão, não somente o ambiente onde situa seu enredo, mas também os personagens, suas vestimentas, seus costumes, suas ações, seus gostos e tradições e, principalmente, sua forma de se expressar.

Trata-se de um drama de amor, permeado de certas cenas cômicas, a cargo do personagem Meyer, um pesquisador (naturalista) alemão, perdido naqueles sertões selvagens e bravios, com suas trapalhadas na maneira de falar e de se comportar. Muitos consideram “Inocência” uma espécie de “Romeu e Julieta sertanejo”. A comparação, posto que um tanto exagerada, até faz certo sentido. A história trata de um caso de amor sem nenhuma possibilidade de “happy end” para os amantes. A exemplo dos personagens da peça de William Shakespeare, o “affaire” amoroso do casal apaixonado termina em tragédia para ambos. Quem leu o romance, sabe do que estou falando.

Inocência (a nossa “Julieta dos trópicos”) é uma bela sertaneja, simples, carinhosa e meiga, que após ter completado 18 anos, foi prometida, á sua revelia, em casamento ao rústico Manecão. Seu “noivo” era um comerciante de gado, que estava sempre viajando, sujeito atrasado e meio selvagem. Ele foi escolhido, sabe-se lá por que, pelo pai da moça, Pereira, sujeito de comportamento rude e autoritário, conservador  tanto no que se referia a costumes, quanto aos rígidos padrões morais da época. Em sua casa, todos, sem exceção, deviam-lhe irrestrita obediência.

Certo dia, Inocência cai muito doente, praticamente desenganada. Desesperado, o pai ficou sabendo de um “médico”, que andava pelas redondezas curando doentes, e resolveu recorrer aos seus préstimos. Tratava-se de Cirino, moço de bom caráter, que se valendo de seus conhecimentos farmacêuticos, adquiridos em curso incompleto de Farmácia que fizera em Ouro Preto, curava os enfermos daquele sertão bravio. Como fazia? Por intuição. Não era médico coisa nenhuma. Mas... curou a moça.

Convidado por Pereira, passou a morar naquela casa, na companhia da sua “paciente”. Não tardou, todavia, para apaixonar-se pela linda adolescente, sendo correspondido por ela. Mas... era um amor impossível de terminar bem. Inocência estava prometida a Manecão. Por este tempo, o naturalista alemão Meyer também foi acolhido como hóspede. O pai de Inocência desconfiou que o estrangeiro estivesse de olho na filha e pediu a ajuda do suposto médico para vigiá-lo. Ou seja, nomeou a raposa para tomar conta do galinheiro. Em suma, Pereira finda por descobrir a verdadeira paixão da moça e dá-lhe uma grande surra. E Cirino acaba morto por Manecão, a pretexto de “lavar sua honra com sangue”. Inocência, todavia, não resiste a tanto drama. Morre de tristeza por haver perdido o amado e por ter de se casar com o rude comerciante de gado que desprezava e pelo qual tinha repulsa. Nessa história toda, só Meyer se sai bem.

Talvez o alemão nem amasse a moça, ou se amasse, fosse um amor “diferente”, caracterizado apenas pela admiração, sem nutrir a mínima expectativa romântica. De volta para a Alemanha, conquista um importante prêmio científico, por haver descoberto  nova espécie de borboleta, que batizou de “Inocência”, ou, no jargão científico, de “Papilio Innocentia”. O romance do Visconde de Taunay, publicado inicialmente em fascículos (e só em 1872 transformado em livro), consta de 30 capítulos, cada um deles introduzido por citações de alguns clássicos da literatura universal, como Goethe, Rousseau, Cervantes, Ovídio, Molière, Walter Scott, Eurípedes, até mesmo Shakespeare e muitos outros. É uma obra-prima de ficção. E Inocência, que só queria poder amar quem seu coração elegesse, é, por qualquer critério que se adote, de fato e de direito, grande personagem feminina, e inesquecível, da Literatura brasileira.


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