A trágica “Julieta” dos
trópicos
Pedro
J. Bondaczuk
A Literatura brasileira
é, sem favor algum, uma das mais ricas e
expressivas do mundo. Sempre que afirmo isso, sou criticado e tachado de
“ufanista”. Por quem? Por pessoas que se acham “entendidas” no assunto, mas que
não são. Creiam-me, não sou nenhum Conde Afonso Celso contemporâneo. Sou, sim,
estudioso das nossas letras e dotado, sim, de um espírito crítico, mas que
tento exercitar com equilíbrio. Porém despido de preconceito, tão comum aos
tantos que consideram que tudo o que é nosso é inferior, é defeituoso e é
incompleto. Depois dos 7 a 1 para a Alemanha, até as conquistas do nosso
futebol passaram a ser desprezadas, como se fossem coisas triviais, de somenos.
Para estes, só nossos fracassos contam.
A Literatura brasileira
não é inferior a nenhuma outra. É, isso sim, subvalorizada. E tal subvalorização
se dá não no exterior, é mister que se frise (na Europa ou nos Estados Unidos),
mas justamente, onde não deveria ser e que se esperava que fosse cultivada, com afinco e com cuidado, mas que
não é: no próprio Brasil. Por que isso acontece? Por uma série de razões que
pretendo, oportunamente, trazer à baila. Estas considerações vêm a propósito de
um dos nossos escritores mais criativos e argutos, no entanto pouco conhecido,
a despeito de haver produzido uma obra consistente e rica, entre ensaios, memórias
e romances e ter sido um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras.
Refiro-me ao Visconde de Taunay (Alfredo Maria Adriano d’Escragnole Taunay),
autor de onze livros, dentre os quais essa obra-prima da ficção que é
“Inocência”.
E por que destaco essa
obra, em particular, das outras que ele produziu, todas excelentes e dignas de
figurar nas melhores e mais seletas bibliotecas? Porque dela emerge uma das
personagens femininas realmente inesquecíveis: justamente a que dá título ao
romance. O livro, aliás, é um marco na Literatura brasileira, por se constituir
numa transição entre o Romantismo e o Naturalismo. A história se passa no
sertão do então vasto Estado do Mato Grosso, antes da criação do Mato Grosso do
Sul. O foco da ação é a cidade de Paranaíba. Comparo (guardadas as devidas
proporções) “Inocência” a “Grande Sertão, veredas”, de Guimarães Rosa. Taunay,
a exemplo do escritor mineiro, descreve, com enorme precisão, não somente o
ambiente onde situa seu enredo, mas também os personagens, suas vestimentas,
seus costumes, suas ações, seus gostos e tradições e, principalmente, sua forma
de se expressar.
Trata-se de um drama de
amor, permeado de certas cenas cômicas, a cargo do personagem Meyer, um
pesquisador (naturalista) alemão, perdido naqueles sertões selvagens e bravios,
com suas trapalhadas na maneira de falar e de se comportar. Muitos consideram
“Inocência” uma espécie de “Romeu e Julieta sertanejo”. A comparação, posto que
um tanto exagerada, até faz certo sentido. A história trata de um caso de amor
sem nenhuma possibilidade de “happy end” para os amantes. A exemplo dos
personagens da peça de William Shakespeare, o “affaire” amoroso do casal
apaixonado termina em tragédia para ambos. Quem leu o romance, sabe do que
estou falando.
Inocência (a nossa
“Julieta dos trópicos”) é uma bela sertaneja, simples, carinhosa e meiga, que
após ter completado 18 anos, foi prometida, á sua revelia, em casamento ao
rústico Manecão. Seu “noivo” era um comerciante de gado, que estava sempre
viajando, sujeito atrasado e meio selvagem. Ele foi escolhido, sabe-se lá por
que, pelo pai da moça, Pereira, sujeito de comportamento rude e autoritário,
conservador tanto no que se referia a
costumes, quanto aos rígidos padrões morais da época. Em sua casa, todos, sem exceção,
deviam-lhe irrestrita obediência.
Certo dia, Inocência
cai muito doente, praticamente desenganada. Desesperado, o pai ficou sabendo de
um “médico”, que andava pelas redondezas curando doentes, e resolveu recorrer
aos seus préstimos. Tratava-se de Cirino, moço de bom caráter, que se valendo
de seus conhecimentos farmacêuticos, adquiridos em curso incompleto de Farmácia
que fizera em Ouro Preto, curava os enfermos daquele sertão bravio. Como fazia?
Por intuição. Não era médico coisa nenhuma. Mas... curou a moça.
Convidado por Pereira,
passou a morar naquela casa, na companhia da sua “paciente”. Não tardou,
todavia, para apaixonar-se pela linda adolescente, sendo correspondido por ela.
Mas... era um amor impossível de terminar bem. Inocência estava prometida a
Manecão. Por este tempo, o naturalista alemão Meyer também foi acolhido como
hóspede. O pai de Inocência desconfiou que o estrangeiro estivesse de olho na
filha e pediu a ajuda do suposto médico para vigiá-lo. Ou seja, nomeou a raposa
para tomar conta do galinheiro. Em suma, Pereira finda por descobrir a
verdadeira paixão da moça e dá-lhe uma grande surra. E Cirino acaba morto por
Manecão, a pretexto de “lavar sua honra com sangue”. Inocência, todavia, não
resiste a tanto drama. Morre de tristeza por haver perdido o amado e por ter de
se casar com o rude comerciante de gado que desprezava e pelo qual tinha
repulsa. Nessa história toda, só Meyer se sai bem.
Talvez o alemão nem
amasse a moça, ou se amasse, fosse um amor “diferente”, caracterizado apenas
pela admiração, sem nutrir a mínima expectativa romântica. De volta para a
Alemanha, conquista um importante prêmio científico, por haver descoberto nova espécie de borboleta, que batizou de
“Inocência”, ou, no jargão científico, de “Papilio Innocentia”. O romance do
Visconde de Taunay, publicado inicialmente em fascículos (e só em 1872
transformado em livro), consta de 30 capítulos, cada um deles introduzido por
citações de alguns clássicos da literatura universal, como Goethe, Rousseau,
Cervantes, Ovídio, Molière, Walter Scott, Eurípedes, até mesmo Shakespeare e
muitos outros. É uma obra-prima de ficção. E Inocência, que só queria poder
amar quem seu coração elegesse, é, por qualquer critério que se adote, de fato
e de direito, grande personagem feminina, e inesquecível, da Literatura
brasileira.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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