Friday, October 30, 2015

Fracassada sem perder a pose

Pedro J. Bondaczuk

Opai” do Naturalismo, Honoré de Balzac, firmou reputação de profundo conhecedor das mulheres (se é que algum homem de fato as conheça ou minimamente as entenda, o que tenho fundadas dúvidas), fama que permanece até hoje. Talvez (provavelmente) esse alegado conhecimento sequer adviesse de experiência pessoal, porém de incomum poder de observação. Talvez. O fato é que Balzac ficou conhecido (também) por esse aspecto. Como “bisbilhoteiro” da alma feminina, criou uma legião de personagens do belo sexo, na coleção de 96 volumes que produziu e que foi denominada de “A comédia humana”. A lógica diz que em todos, rigorosamente todos os livros dessa série trouxe à cena mulheres mais ou menos importantes, conforme o desenvolvimento do enredo. Mas elas não estiveram ausentes em nenhum dos seus romances, novelas e contos.

Muitos dos seus livros têm por títulos nomes de mulheres, o que sugere que elas sejam as personagens centrais das histórias narradas. Cito alguns exemplos, como “Modesta Mignon”, “Honorina”, “Beatriz”, “Úrsula Mirouét”, “Pierrette”, “Massimila Doni”, “A prima Bette”, “Eugênia Grandet” e vai por aí afora. Quantas dessas fêmeas citadas  (e não citadas) podem ser consideradas inesquecíveis? Sem nenhum exagero, eu diria: TODAS. Cada qual, óbvio, por alguma razão específica. Balzac, se não conhecia a psicologia feminina tão bem, como se lhe atribui, trouxe-a à baila vezes e vezes sem conta com uma convicção inabalável que convenceu à maioria de que realmente era “expert” no assunto..

Pincei, aqui e ali, algumas citações dele a propósito delas. Como esta: “A mulher é o ser mais perfeito entre as criaturas: é uma criação transitória entre o homem e o anjo”. Pelo menos mostrou que as tinha em alta conta. Ou como esta afirmação, diria que um tanto mais “picante”: “Mesmo à mulher mais faladora, o amor ensina a calar”. Será? Não ponho minha mão no fogo, embora eu não seja nenhum entendido na psicologia feminina. Prefiro amá-las, mesmo sem entendê-las. Menciono, por fim, mais esta citação, embora pudesse mencionar dezenas de outras, frutos de sua observação: “As mulheres vêem tudo ou não vêem nada, segundo as disposições da sua alma: a única luz delas é o amor”.

Apontar, pois, uma única personagem feminina inesquecível na obra de Honoré de Balzac é meio caminho para ser contestado por milhões. Cada leitor, certamente, tem a sua, por motivos que só ele pode explicar (ou, provavelmente, nem possa). Pois foi este o desafio que me fizeram dia desses, me colocando, como se vê, numa “roubada”. Como não sou homem de ficar em cima do muro, e ciente de que serei unanimemente contestado, escolhi uma específica, com a ressalva de que também não me esqueço de dezenas de outras. Não se trata de achar que a escolhida seja “a única” inesquecível. Por razões que nem sei explicar, optei por aquela que, para mim, é a “mais inesquecível”. Por que? Talvez por pura intuição ou sei lá o quê.. Refiro-me a Eugênia Grandet, personagem do romance de mesmo nome, um dos primeiros que Balzac publicou, um dos que mais vendeu e um dos raros que escreveu em sua fase de “felicidade”, quando ainda não estava atolado em dívidas, coisa que o atormentou na maior parte da sua vida.

A esta altura, meus tantos críticos de ocasião devem estar murmurando, mordazmente, á socapa: “O que este sujeito viu nessa protagonista tolinha, ingênua e fútil, cobiçada por todos os rapazes solteiros da cidade não por suas virtudes, mas de olho na fortuna do papai Grandet, grande unha de fome, protótipo da avareza, que dava a vida para não ceder um único e reles centavo a quem quer que fosse”? Nem sempre nos lembramos vida afora de alguém pelo seu lado bom. Ou apenas por ele. Podemos não esquecer de determinada pessoa (ou, no caso, personagem) por sua crueldade, ou feiúra, ou hipocrisia, ou burrice ou por tantos e tantos e tantos defeitos mais. Claro que na maioria das vezes as bondosas, altruístas, belas, humanas etc.etc.etc. tendem a nos impressionar mais e por isso se tornar inesquecíveis.

Eugênia Grandet não ousa rebelar-se contra o tirânico pai (não, pelo menos, ostensivamente), um ditador de causar inveja a Hitler, Stalin e Pinochet somados. Sua rebelião é sutil e dissimulada. Todavia, sem se aperceber, apaixona-se por um pilantra de marca, vagabundo com alergia ao trabalho, desses que esperam que dinheiro caia do céu sem precisar fazer nada se não colhê-lo, no caso seu primo Carlos, cuja família tinha ido à bancarrota e que via no casamento com a prima a única forma de se dar bem na vida. Tratava-se de um sujeitinho raquítico, um tanto afeminado, irresponsável e mal intencionado, muitíssimo pior do que qualquer de seus tantos rivais, pretendentes de Eugênia. Mas foi a ele que ela escolheu. E não relutou, à revelia do Papai Grandet (que percebeu a mil anos-luz de distância as verdadeiras intenções do pilantra), em lhe dar, até, certa importância em dinheiro, para que ele viajasse à Índia e com isso reunisse condições, como alegava, para se casar com ela, regenerando-se, por consequência. O malandro, claro, não tinha nenhuma intenção de se regenerar e de mudar de vida e deu um baita bolo na tolinha apaixonada.

Balzac foge do estereótipo de “final feliz” da maioria dos romances do seu tempo. Sua protagonista se dá mal e tem, por isso, todos os motivos para se lamentar e nenhum para celebrar. É enganada pelo “amor de sua vida” e tem que amargar abandono, solidão e desilusão. Então, por que cargas d’água elegi Eugênia Grandet como personagem feminina inesquecível na vasta obra de Balzac se ela era como era?!!! Pelo fato dela não perder a pose perante o mundo e nem se entregar – pelo menos em público – a estéreis e inúteis lamentações, que só causariam piedade nos mais sensíveis e alimentariam chacotas e toda espécie de zombarias na imensa maioria das pessoas. Ao contrário, a despeito de todas as expectativas negativas, sobretudo dos leitores, a moça desafia o mundo, céus. terras e potestades e mantém, olimpicamente, a pose de garota rica e elegante, como se fosse a mais vitoriosa das mulheres. Só mesmo um gênio, como Balzac, para criar uma personagem assim que, na vida real nem mesmo é tão rara, mas que em literatura é raríssima.


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