Vitória
apenas parcial de Eros
Pedro J. Bondaczuk
O
saudoso psicanalista, escritor e poeta mineiro, Hélio Pellegrino, fez, em certa
ocasião, em uma de suas tantas e brilhantes crônicas – mais especificamente na
intitulada “Apologia da dor de dente”, publicada no jornal “Folha de S. Paulo”,
em 26 de junho de 1983 – uma inquietante constatação, que dá muito que pensar:
“A vida é, afinal, luta renhida entre Eros e Tanatos. O padecimento do corpo é
um berro de Eros, contra as vilanias de Tanatos”. E o que isso significa? Quem
tem (mesmo que mínima) noção de mitologia, ou de psicanálise, entendeu de
imediato o teor dessa declaração.
Eros
e Tanatos são, figurativamente, os dois instintos básicos do homem (e, ademais,
os de todos os seres vivos). O primeiro é o de autopreservação individual e,
por conseqüência, da espécie (principalmente desta), papel que só é cumprido
mediante a reprodução. Já o segundo é o de destruição – própria e/ou de um
suposto concorrente por aquilo que nos assegure a sobrevivência: a fonte de
alimentos, a parceira, ou parceiras com a qual (ou as quais) possamos cumprir
nossa função reprodutiva e assegurar que nossos genes sobrevivam, mesmo que
parcialmente, já que partilhados com o par feminino (ou masculino, claro, no
caso de se tratar de mulher) etc. Sua função é a de eliminar o indivíduo, após
cumprido seu papel, para evitar superpopulação.
Claro
que essa explicação é rudimentar e não entra em detalhes, que, aliás, nem vêm
ao caso nesta descompromissada reflexão. Basta saber que Eros e Tanatos são
duas figuras mitológicas utilizadas para simbolizar esses instintos básicos dos
animais (e claro, os nossos) em permanente luta entre eles. Individualmente, a
vitória sempre acaba sendo a da segunda entidade, a da destruição, representada
pela morte. Todo ser vivo, evidentemente, um dia morre. Não levanto aqui a
questão religiosa (afinal, não sou teólogo) sobre se a extinção humana é
definitiva ou se a sua essência, que chamam de “alma”, sobrevive em algum
lugar, mantendo a característica fundamental do homem a que pertence, ou seja,
sua personalidade, sendo premiada ou castigada conforme seu comportamento no
mundo dos vivos.
Para
assegurar a sobrevivência física, todo animal, sem exceção, suprime a vida de
algum outro, não importa qual (se for carnívoro), ou de algum vegetal, que também
é ser vivo (caso seja hervíboro). Não existe nenhuma outra forma de assegurar a
sobrevivência. A natureza, nesse aspecto, portanto é crudelíssima. Não conheço
nenhuma espécie que se alimente exclusivamente de minerais. Estes podem até
entrar na dieta (e entram), mas de forma apenas suplementar. Todavia é regra
que a vida só se alimenta de vida.
Todavia,
o escritor sul-africano Stuart Cloete, em seu livro “Balada africana” (Tradução
de Raul de Polillo, Boa Leitura Editora), nos chama a atenção para o maior
predador da natureza. E este, óbvio, somos nós, humanos. O romancista escreve:
“O maior de todos os parasitas é o homem que vive de todas as coisas vivas. Das
coisas que crescem; das coisas que correm; das coisas que voam; e das coisas
que nadam. O homem consome-as todas. Consome os seus próprios semelhantes na
guerra; mas não sabe disso. Porque não são apenas os canibais que comem os
corpos de homens. Outros homens lhes bebem o suor; bebem-lhes o sangue, que é a
vida do homem. E devoram-lhes o tempo – de modo que eles não têm tempo para
pensar, que é a função do homem; isto faz com que os homens corram e se
esfalfem o dia todo, e o façam também durante a noite – mas nunca tratem de
seus próprios assuntos, engajados que estão a serviço e para lucro de outro. E
estes são os homens que denominamos civilizados – estes consumidores de homens
– e os homens que permitem que os outros os consumam”.
Por
trágica, horrenda e pessimista que a constatação pareça (e seja), é a pura
expressão da verdade. Aliás, é a lógica, o óbvio, e até “ululante”, como
certamente Nelson Rodrigues o classificaria. Somos, sem dúvida alguma, os
maiores predadores da natureza. Somos os seres mais sanguinários e cruéis que
já habitaram o Planeta, muito piores do que dinossauros e outras tantas
gigantescas bestas que eventualmente tenham existido e desaparecido para
sempre, por algum motivo. E isso incomoda? A alguns (mais sensíveis e
piedosos), certamente, sim. À imensa maioria, no entanto, não causa o menor
incômodo ou constrangimento. Tais pessoas sequer pensam nisso. Contudo, é algo
que, mesmo que se quisesse ou se queira, não pode ser mudado. É instintivo. É
regra básica e fundamental da natureza. Sempre foi e sempre será dessa
forma Não há alternativa.
O
escritor José de Alencar, contudo, apresenta, no romance “A pata da gazela”, o
outro lado da moeda. Ou seja, somos, simultaneamente, predadores e presas. E os
que nos “apresam”, pitorescamente, não são seres maiores, mais fortes e mais
inteligentes do que nós. Pelo contrário, são tão minúsculos a ponto de serem
invisíveis a olho nu. São os vírus e bactérias, que se valem do nosso organismo
para sobreviver e que nos provocam doenças, que a Medicina luta incansavelmente
para exterminar. Todavia, a cada cura obtida sobrevêm dezenas, centenas, quiçá
milhares ou sabe-se lá quantas novas moléstias a realizarem a tarefa de
Tanatos: ou seja, a de nos eliminar.
José
de Alencar escreveu a propósito: “O que
somos nós afinal de contas? Uma presa; enquanto vivos, a presa das moléstias e
das paixões próprias ou alheias; depois de mortos, a presa dos vermes ou das
chamas”. Estas reflexões (tanto do romancista, quanto, e principalmente,
minhas) podem parecer, aos desavisados, sumamente pessimistas, mas não são. São
a mais lídima, evidente e óbvia expressão da realidade a que sequer nos damos
conta. A vida é assim, pelo menos no plano físico. E não há quem, e nem há
forma, disso eventualmente mudar.
Com tudo isso, com toda essa crueldade inerente à
lei maior da natureza, Tanatos, no que se refere à nossa espécie e não a algum
indivíduo em particular, pelo menos por enquanto, vem perdendo a batalha para
Eros. A humanidade se multiplica em progressão geométrica, enquanto a
multiplicação de recursos para sustentá-la apresenta crescimento em progressão
apenas aritmética, dando razão a Robert Malthus que previa que, ao cabo do
processo, ocorreria inevitavelmente a falta do básico, do essencial para
sustentar a vida humana: o alimento.
Os que contestaram sua teoria e até a
ridicularizaram apresentaram o argumento da evolução das técnicas agrícolas e
de criação de animais, que forneceriam recursos infinitos ao homem, nesse
aspecto. Estes, todavia, não teriam limites? A mínima lógica diz que sim. E
nessa equação sequer entram os fatores do egoísmo, das injustiças etc. que, em
todos os tempos (e os atuais não são exceção) produziram e produzem milhões,
quiçá bilhões de famintos, em um mundo no qual (pelo menos atualmente) abundam
alimentos. A superpopulação é, e será cada vez mais, a grande armadilha da
humanidade, o maior risco potencial da extinção da espécie. É, pois, Tanatos,
aparentemente vencido, usando a parcial vitória de Eros como arma para vencer a
batalha final. Certamente voltarei ao assunto, oportunamente, enfocando novos
ângulos da questão.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
No comments:
Post a Comment