Ídolo inesquecível e
misterioso
Pedro
J. Bondaczuk
A vida, a
personalidade, a carreira e a morte do cantor Carlos Gardel foram e continuam
sendo objetos de controvérsia e de interesse de milhões de pessoas, de várias
gerações, mesmo passados 88 anos da sua morte. Esta ocorreu em 24 de junho de
1935, em Medellin, em um desastre aéreo em que também morreu seu maior parceiro
e amigo Alfredo Le Pera. O acidente aeronáutico se deu quando o artista – que
melhor encarnou a alma argentina e cujo nome está intimamente vinculado ao
tango – realizava turnê pela Colômbia. Na época, estava no auge do sucesso.
Poucas personalidades –
e não importa de que áreas de atuação – já tiveram suas vidas tão vasculhadas,
tão literalmente “viradas pelo avesso”, quanto Gardel. De cantores,
seguramente, não conheço nenhum, seja de que país for, que haja despertado
tamanho interesse, e quase noventa anos após sua morte. Para que o leitor tenha
uma idéia, cataloguei em meu bloco de anotações – aquele que já se tornou
familiar ao leitor deste espaço, de tanto que o menciono, em que anoto fatos
pitorescos das centenas de biografias que li – vinte e sete livros abordando
praticamente todos os aspectos da trajetória desse inquestionável ídolo
argentino. E essa quantidade não é nem 10%, se tanto, do que já se escreveu a
seu respeito.
Até Jorge Luís Borges
escreveu sobre Gardel. Outra personalidade a tê-lo como personagem foi o poeta
(seu amigo pessoal) Francisco Garcia Jimenez. Essa obra, datada de 1946, foi,
recentemente, reeditada e ampliada. Aliás, é considerada a primeira biografia
formal do cantor. O livro de Jimenez tem o título “Carlos Gardel e a sua
época”. O de Borges, “Carlos Gardel e Carlos Zubillaga”. Ambos são imperdíveis
e são best-sellers internacionais. Pudera!
Carlos Gardel é,
literalmente, venerado na Argentina. Seus restos mortais estão sepultados no
cemitério de La Chacarita, em Buenos Aires. Seu túmulo é visitado, com
reverência e adoração, por milhões de admiradores que sequer eram nascidos
quando ele morreu. Há enorme estátua do cantor no centro da capital argentina
lembrando aos habitantes da cidade, a todo o momento, o que ele significou para
as artes e para a cultura portenhas.
O pitoresco disso tudo
é que, a despeito de tantas biografias, de tantas matérias de jornais e de
revistas e de tantos programas especiais de rádio e de televisão, não se
apurou, sequer, sua nacionalidade verdadeira – disputada pela França e pelo
Uruguai – e nem mesmo o seu nome de batismo! E isso importa? Acredito que não.
Mas...
Os franceses asseguram
que o artista nasceu em Tolouse e foi registrado como Charles Romuald Gardés,
filho de pai ignorado e de Berthe Gardés. Os uruguaios, no entanto, refutam
essa afirmação. Com base em alguns documentos e matérias jornalísticas,
asseguram que o berço natal do cantor é Tacuarembó. Seu pai seria importante
líder político local, Carlos Escayola e a mãe Maria Lélia Oliva, que teria
apenas 13 anos de idade na ocasião em que o gerou. Ambas as partes alegam ter
provas irrefutáveis a propósito da nacionalidade desse que consolidou e
consagrou o tango, mas os neutros na questão nunca se convenceram sobre quem
está com a razão.
Curiosamente, as partes
concordam quanto à data de nascimento, o que intriga ainda mais os que procuram
pôr fim à controvérsia, chegando, finalmente, à verdade: 11 de dezembro de
1890. Gardel, por sua vez, nunca fez nada para esclarecer a questão. Sempre que
indagado sobre o tema, ou seja, onde nasceu e quem eram seus pais,
desconversava e mudava de assunto. Arrematava, invariavelmente, dizendo: “Nasci
em Buenos Aires aos dois anos e meio de idade”, que foi quando chegou à capital
argentina, sem esclarecer, contudo, levado por quem e em que circunstâncias.
Os uruguaios têm tanta
certeza de que o cantor nasceu no país que, em 2003, seu governo propôs à
Organização das Nações Unidas para a Educação e Cultura (Unesco), que a voz de
Gardel fosse gravada no Programa Memória do Mundo da entidade. Propôs e foi
atendido. O cantor e ator (atuou em onze filmes da Paramount, sendo “El dia que
me quieras” o mais célebre deles, rodado em 1935, pouco antes da sua morte),
todavia, adotou, no início de carreira, o nome artístico de “El Morocho Del
Abasto” com o qual se consagrou, sendo, também, chamado com frequência de “El
Zorzal Criollo”.
Escrevi muito sobre
Carlos Gardel e, para tanto, fiz, há já bom tempo, criteriosa pesquisa sobre
sua vida e carreira. Em 1985, no cinqüentenário de sua morte, fiz extensa
matéria, publicada na página 48 do jornal Correio Popular de Campinas, na
edição de 1º de setembro daquele ano (um domingo). Na ocasião, foram prestadas
centenas de homenagens a esse ídolo transnacional, que se sentia argentino, mas
que era (e é) reverenciado em toda a América Latina.
Os “gardelófilos” da
minha cidade (entre os quais me incluo, como apreciador de tango que sou),
também renderam tributo à memória do cantor e ator. Como parte de extensa
programação, por exemplo, o Museu da Imagem e do Som (MIS) de Campinas exibiu,
no Teatro Castro Mendes, o filme “Tango Bar”, dirigido por John Renhard, e
protagonizado, logicamente, pelo homenageado, pontilhando um elenco dos mais
qualificados.
Muito se tem escrito
sobre a necessidade das pessoas simples de criarem ídolos, não importa se do
cinema, dos esportes, do show business ou se da música popular. A explicação
mais plausível que li é a que afirma que esse procedimento é uma espécie de
“projeção” dos anseios dos que idolatram tais personalidades, como compensação
para os fracassos e o anonimato de suas vidas. É possível. Num passado remoto,
os idolatrados eram, na maioria dos casos, aventureiros, boêmios e menestréis
vagabundos, que não paravam em lugar algum e cuja liberdade excitava a
imaginação popular. Daí figuras como François Villon, o poeta-bandoleiro
francês; o português José Maria Du Bocage e o baiano Gregório de Mattos Guerra,
por exemplo, terem sido ídolos em suas épocas, embora perseguidos pelas
autoridades civis e eclesiásticas. E amanhã, quais serão os ídolos? Voltarão a
ser os poetas? Serão os escritores? (quem nos dera!) Como saber? Voltarei ao
tema.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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