Saturday, May 18, 2013


Ídolo inesquecível e misterioso

Pedro J. Bondaczuk

A vida, a personalidade, a carreira e a morte do cantor Carlos Gardel foram e continuam sendo objetos de controvérsia e de interesse de milhões de pessoas, de várias gerações, mesmo passados 88 anos da sua morte. Esta ocorreu em 24 de junho de 1935, em Medellin, em um desastre aéreo em que também morreu seu maior parceiro e amigo Alfredo Le Pera. O acidente aeronáutico se deu quando o artista – que melhor encarnou a alma argentina e cujo nome está intimamente vinculado ao tango – realizava turnê pela Colômbia. Na época, estava no auge do sucesso.

Poucas personalidades – e não importa de que áreas de atuação – já tiveram suas vidas tão vasculhadas, tão literalmente “viradas pelo avesso”, quanto Gardel. De cantores, seguramente, não conheço nenhum, seja de que país for, que haja despertado tamanho interesse, e quase noventa anos após sua morte. Para que o leitor tenha uma idéia, cataloguei em meu bloco de anotações – aquele que já se tornou familiar ao leitor deste espaço, de tanto que o menciono, em que anoto fatos pitorescos das centenas de biografias que li – vinte e sete livros abordando praticamente todos os aspectos da trajetória desse inquestionável ídolo argentino. E essa quantidade não é nem 10%, se tanto, do que já se escreveu a seu respeito.

Até Jorge Luís Borges escreveu sobre Gardel. Outra personalidade a tê-lo como personagem foi o poeta (seu amigo pessoal) Francisco Garcia Jimenez. Essa obra, datada de 1946, foi, recentemente, reeditada e ampliada. Aliás, é considerada a primeira biografia formal do cantor. O livro de Jimenez tem o título “Carlos Gardel e a sua época”. O de Borges, “Carlos Gardel e Carlos Zubillaga”. Ambos são imperdíveis e são best-sellers internacionais. Pudera!  

Carlos Gardel é, literalmente, venerado na Argentina. Seus restos mortais estão sepultados no cemitério de La Chacarita, em Buenos Aires. Seu túmulo é visitado, com reverência e adoração, por milhões de admiradores que sequer eram nascidos quando ele morreu. Há enorme estátua do cantor no centro da capital argentina lembrando aos habitantes da cidade, a todo o momento, o que ele significou para as artes e para a cultura portenhas.

O pitoresco disso tudo é que, a despeito de tantas biografias, de tantas matérias de jornais e de revistas e de tantos programas especiais de rádio e de televisão, não se apurou, sequer, sua nacionalidade verdadeira – disputada pela França e pelo Uruguai – e nem mesmo o seu nome de batismo! E isso importa? Acredito que não. Mas...

Os franceses asseguram que o artista nasceu em Tolouse e foi registrado como Charles Romuald Gardés, filho de pai ignorado e de Berthe Gardés. Os uruguaios, no entanto, refutam essa afirmação. Com base em alguns documentos e matérias jornalísticas, asseguram que o berço natal do cantor é Tacuarembó. Seu pai seria importante líder político local, Carlos Escayola e a mãe Maria Lélia Oliva, que teria apenas 13 anos de idade na ocasião em que o gerou. Ambas as partes alegam ter provas irrefutáveis a propósito da nacionalidade desse que consolidou e consagrou o tango, mas os neutros na questão nunca se convenceram sobre quem está com a razão.

Curiosamente, as partes concordam quanto à data de nascimento, o que intriga ainda mais os que procuram pôr fim à controvérsia, chegando, finalmente, à verdade: 11 de dezembro de 1890. Gardel, por sua vez, nunca fez nada para esclarecer a questão. Sempre que indagado sobre o tema, ou seja, onde nasceu e quem eram seus pais, desconversava e mudava de assunto. Arrematava, invariavelmente, dizendo: “Nasci em Buenos Aires aos dois anos e meio de idade”, que foi quando chegou à capital argentina, sem esclarecer, contudo, levado por quem e em que circunstâncias.

Os uruguaios têm tanta certeza de que o cantor nasceu no país que, em 2003, seu governo propôs à Organização das Nações Unidas para a Educação e Cultura (Unesco), que a voz de Gardel fosse gravada no Programa Memória do Mundo da entidade. Propôs e foi atendido. O cantor e ator (atuou em onze filmes da Paramount, sendo “El dia que me quieras” o mais célebre deles, rodado em 1935, pouco antes da sua morte), todavia, adotou, no início de carreira, o nome artístico de “El Morocho Del Abasto” com o qual se consagrou, sendo, também, chamado com frequência de “El Zorzal Criollo”.

Escrevi muito sobre Carlos Gardel e, para tanto, fiz, há já bom tempo, criteriosa pesquisa sobre sua vida e carreira. Em 1985, no cinqüentenário de sua morte, fiz extensa matéria, publicada na página 48 do jornal Correio Popular de Campinas, na edição de 1º de setembro daquele ano (um domingo). Na ocasião, foram prestadas centenas de homenagens a esse ídolo transnacional, que se sentia argentino, mas que era (e é) reverenciado em toda a América Latina.

Os “gardelófilos” da minha cidade (entre os quais me incluo, como apreciador de tango que sou), também renderam tributo à memória do cantor e ator. Como parte de extensa programação, por exemplo, o Museu da Imagem e do Som (MIS) de Campinas exibiu, no Teatro Castro Mendes, o filme “Tango Bar”, dirigido por John Renhard, e protagonizado, logicamente, pelo homenageado, pontilhando um elenco dos mais qualificados.

Muito se tem escrito sobre a necessidade das pessoas simples de criarem ídolos, não importa se do cinema, dos esportes, do show business ou se da música popular. A explicação mais plausível que li é a que afirma que esse procedimento é uma espécie de “projeção” dos anseios dos que idolatram tais personalidades, como compensação para os fracassos e o anonimato de suas vidas. É possível. Num passado remoto, os idolatrados eram, na maioria dos casos, aventureiros, boêmios e menestréis vagabundos, que não paravam em lugar algum e cuja liberdade excitava a imaginação popular. Daí figuras como François Villon, o poeta-bandoleiro francês; o português José Maria Du Bocage e o baiano Gregório de Mattos Guerra, por exemplo, terem sido ídolos em suas épocas, embora perseguidos pelas autoridades civis e eclesiásticas. E amanhã, quais serão os ídolos? Voltarão a ser os poetas? Serão os escritores? (quem nos dera!) Como saber? Voltarei ao tema.

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