Thursday, May 30, 2013

Resgate da memória de um mito

Pedro J. Bondaczuk

A “poeira’ do tempo torna quase impossível ao historiador traçar o perfil exato, ou pelo menos aproximado – com o rigor científico que a tarefa requer – dos homens e mulheres que participaram ativamente da construção da história de um povo mediante obras e ações. Lendas e mitos misturam-se a fatos. Cabe ao pesquisador separar o joio do trigo, no afã de chegar à verdade histórica. Como? Trata-se de tarefa gigantesca, que exige dedicação plena, não raro de toda uma vida e, ainda assim, sem garantia de sucesso.
Mesmo no que se refere a fatos, não raro o mesmo acontecimento tem várias versões, conforme quem o testemunhou e relatou. Em qual delas acreditar? Manda o bom senso que se dê crédito à mais sóbria, à menos fantástica, à que teoricamente seja pelo menos verossímil. Ocorre que nem sempre (diria raramente) as coisas ocorrem guardando um mínimo de lógica. Não raro, a versão que pareça, à primeira vista, a mais improvável é a verdadeira, comprovada tempos depois por documentos e testemunhos, e vice-versa. Por isso, encaro a história sempre com um pé atrás. Nunca dou crédito absoluto ao que se torna consensual (ou quase), por entender que se trata de uma versão de determinado fato, passiva, portanto, de ser revisada, quando não desmentida.

Uma das figuras, da História do Brasil mais fascinantes e mais difíceis de serem analisadas, por não se saber se parte (ou se tudo) do que se sabe dela é verdadeiro ou não passa de lenda, é José de Anchieta. E não faltam pesquisas a seu respeito. Muito pelo contrário. Esse até mítico jesuíta está em vias de se tornar o segundo santo brasileiro da Igreja Católica (embora não tenha nascido no Brasil), já que foi beatificado pelo papa João Paulo II em 1980 e seu processo para a “santificação” está bem adiantado no Vaticano.

Enquanto alguns historiadores atribuem-lhe a responsabilidade da fundação da cidade de São Paulo (e não a Manoel de Nóbrega, como outros tantos asseguram ter sido o fundador), ao mesmo tempo negam-lhe participação na criação do Rio de Janeiro. A despeito de inúmeras pesquisas (até para fundamentar seu processo junto ao Vaticano), porém,  fatos básicos para traçar a biografia e o perfil histórico de uma personalidade, como por exemplo, a data exata do seu nascimento, são, ainda nebulosos e objetos de controvérsias. Nenhum historiador tem certeza do ano em que Anchieta nasceu.

Sabe-se que José (ou Joseph, conforme J. Nunes Vilhena assegura que era seu nome de batismo) é natural do pequeno vilarejo de La Laguna de Tenerife, no arquipélago das Ilhas Canárias. Alguns afirmam que seu nascimento se deu em 1533. Outros, no entanto, asseguram que o ano correto foi 1534, coincidindo com o de criação da Companhia de Jesus, por parte de Inácio de Loyola. Ambas as correntes garantem que têm documentos que comprovam suas respectivas teses. Alguém, no entanto (diz a lógica) está errado. Mas quem? Como saber?

A Companhia de Jesus merece pelo menos um ou dois parágrafos, antes de se abordar, com maiores detalhes, a vida e a obra de José de Anchieta. Por que? Pela sua importância política, apesar de se tratar de uma ordem supostamente apenas religiosa. Seu poder, logo após sua criação, aumentou tanto, a ponto de seus superiores, até os dias de hoje, serem conhecidos como “papas negros”. A nova ordem visava, originalmente, a ser uma resposta, uma arma eficaz da contra-reforma, ou seja, do movimento que visava a combater a reforma protestante promovida por Martinho Lutero na Alemanha e que se ramificou por vários países da Europa.

A Companhia de Jesus teve, talvez, sua mais eficiente atuação (claro, do ponto de vista do Vaticano), nas recém-formadas colônias da Espanha e de Portugal no Novo Mundo. Destacou-se, sobretudo, no Brasil, para onde eram, originalmente, enviados, pela Coroa Portuguesa, degredados, os que eram considerados a escória social da metrópole:  ladrões, mendigos, prostitutas, rufiões e marginais da pior espécie, tidos como irrecuperáveis. Seu papel era, pelo menos em teoria, o de converter essas pessoas, assim como os índios da colônia, à fé católica. Foram inúmeras suas rusgas principalmente com os bandeirantes paulistas, que consideravam a Companhia de Jesus uma rival política. 

No que se refere a José de Anchieta, num ponto  todos os historiadores convergem: no fato de ele ter nascido em uma família humilde e profundamente religiosa. Em 13 de julho de 1553, aos 20 anos de idade (ou seria aos 21?), já monge, embora ainda não ordenado, o jovem noviço desembarcou no Brasil, na comitiva do segundo Governador Geral, Dom Duarte da Costa, aportando nessa data em Salvador, na Bahia. Dali, a ordem enviou-o a São Vicente, onde Martim Afonso de Souza havia iniciado o plantio de cana de açúcar e formado um importante e relativamente próspero núcleo de colonização. Era um desafio imenso para aquele moço, quase menino, que revelaria virtudes que o transformariam em um mito da nossa história.

Quando desembarcou nesta então vasta e praticamente inexplorada colônia portuguesa, um “deserto verde” sem fim, praticamente o maior dessa natureza do Planeta, que em menos de quatro séculos viria a se transformar no Brasil independente, o jovem monge, praticamente adolescente, havia recém se licenciado pela tradicional Universidade de Coimbra, grande pólo, na ocasião, de elevados ideais humanísticos da Europa, onde ingressou em 1548, aprofundando-se nas disciplinas Dialética, Filosofia, Letras, Latim e Vernáculo. Por ocasião do seu desembarque na Bahia, fazia, apenas, dois anos que Anchieta integrava a Companhia de Jesus, ordem em que ingressou em 1551.

É sobre essa figura fascinante e lendária (sobre a qual já escrevi dois ensaios que, admito, são inconclusivos pelas razões já expostas) que me proponho a refletir com vocês, provavelmente sem muito rigor científico (talvez sem nenhum), mas ressaltando, sobretudo, suas características mais notáveis: grande espírito empreendedor, elogiável capacidade de iniciativa, natural talento diplomático e, sobretudo, fé. Foram estas as virtudes que o levaram a participar, de uma forma ou de outra, da fundação das que hoje são as duas maiores e mais importantes metrópoles brasileiras: São Paulo e Rio de Janeiro.


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