Sunday, May 26, 2013

A experiência de ser vidraça


Pedro J. Bondaczuk


A “Alianza Popular Revolucionária Americana”, conhecida pela sigla APRA, uma das organizações políticas melhor organizadas e mais antigas do Peru e de toda a América Latina, dentro de apenas 16 dias, deixará de ser pedra, para tornar-se vidraça.

Pela primeira vez na história do partido, iniciada em 1929 com o falecido Victor Haya de la Torre (e com um programa inicialmente antiimperaliasta e de nítido conteúdo esquerdista) assumirá o poder, num momento extremamente dramático para os peruanos.

Desde anteontem, o líder aprista, Alan Garcia Perez, eleito em abril passado, embora sem obter a maioria exigida pela Constituição, é o virtual presidente do Peru, faltando apenas a cerimônia de transmissão do cargo, que vai ocorrer no dia 28 próximo.

É que o jovem político latino-americano, com seus verdes 36 anos de idade, foi, oficialmente, credenciado pela Justiça Eleitoral como o vencedor das eleições. Num discurso de improviso, revivendo os velhos tempos revolucionários da PARA, propôs uma confederação continental de defesa dos pobres, que é o que não falta nesta atormentada América Latina.

Resta saber como Alan Garcia fará para passar do discurso à prática, da retórica às ações efetivas, da exposição de intenções à sua concretização. O país que o jovem presidente vai receber de Fernando Belaunde Terry não é, nem de longe, a sociedade ideal com que ele sonha.

Estrangulado por uma dívida externa, hoje avaliada em torno de US$ 13 bilhões, o Peru conta, ainda, com uma inflação acumulada anual em torno de 120%, com altíssimas taxas de desemprego e subemprego e com uma insatisfação generalizada, que varre a República de alto a baixo. É uma sociedade muito difícil de governar e de vida muito violenta no âmbito continental.

Não apenas a violência representada pela ação de dois grupos guerrilheiros, de filosofias diferentes e objetivos idênticos, o “Sendero Luminoso” e o Tupac Amaru. Mas, principalmente, uma outra, mais constante, até mais sutil, consubstanciada nas relações patrão-escravo, em que ambos buscam se agredir mortalmente, embora um não podendo prescindir do outro.

Ou uma terceira forma de violência, esta mais injustificada ainda para um país que deseja se transformar numa sociedade moderna e democrática. Ou seja, a exclusão de 50% da população peruana da participação na vida política. E esse processo excludente, reconheça-se, não vem de hoje. Não se prende aos vários regimes militares que governaram o Peru e muito menos à gestão atual de Belaunde Terry.

A rigor, os peruanos nunca tiveram uma efetiva participação nas mais importantes decisões nacionais, antes mesmo que o seu território fosse conquistado pelos espanhóis. Desde o último século do Império Inca, que, talvez por essa razão, tenha ruído fragorosamente, diante de meros caçadores de fortuna, como o foram Pizarro e Almagro, sua população vinha sendo marginalizada.

Quando colônia da Espanha, o Peru permaneceu totalmente à margem da escolha do seu próprio caminho. A independência política, em 1821, não veio acompanhada de um arejamento da mentalidade. E o país ficou entregue a algumas oligarquias. E estas resistem, ainda hoje, ao tempo e às transformações deste século.

O escritor peruano, Manuel Scorza, em seu livro “Garambombo, o Invisível”, criou um personagem que exprime com exatidão como é o pobre peruano. E não somente do Peru, diga-se de passagem, mas também do Brasil, do Uruguai, da Argentina, do Chile e dos demais integrantes desta sofrida América Latina.

Segundo a visão exímia do arguto romancista, os deserdados e desvalidos latino-americanos tiveram a sua importância reduzida a tal ponto, chegaram a um grau de miséria tão agudo, que até seu líder (involuntário, por sinal) pensa que é invisível, tantas vezes os poderosos topam com suas angústias e frustrações e nada fazem para minorar seus sofrimentos.

Livrar o Peru dos “Garambombos” deverá ser o principal empenho do seu novo presidente. E nessa tarefa, cheia de obstáculos imensos até para políticos mais vividos e experientes, Alan Garcia Perez, e por extensão a PARA, sentirão, pela primeira vez, o dissabor de serem vastas e brilhantes vidraças, vulneráveis a pedras de todos os tamanhos e vindas de todas as direções.

(Artigo publicado na página 9, Internacional, do Correio Popular, em 12 de julho de 1985).


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