Lições de sobrevivência
e paixão
Pedro
J. Bondaczuk
Há exatos cem anos e
doze dias – escrevo estas reflexões em 24 de maio de 2013 – mais precisamente
em 12 de maio de 1913, nascia, no bairro de São Cristóvão, no Rio de Janeiro
(então a capital da República), José Bispo Clementino dos Santos, oriundo de
família humilde de quem se pode falar que se tratou de um vencedor. Levando em
conta os problemas de saúde que teve por décadas, considero-o um
“sobrevivente”, pois quase atingiu idade centenária. Morreu em 14 de junho de
2008, um dia depois dos tradicionais festejos de Santo Antonio, aos 95 anos.
Dito assim, dessa
forma, ou seja, enunciando seu nome de batismo, pouquíssimas pessoas sabem de
quem se tratou. Tudo, porém, muda de figura se eu declinar o apelido que ganhou
(não se sabe exatamente quando), e que o consagrou: Jamelão. Sim, refiro-me ao
consagrado puxador de samba da tradicionalíssima e tão popular Escola de Samba
Estação Primeira de Mangueira. Raras, raríssimas são as pessoas razoavelmente
bem informadas – mesmo que não gostem de Carnaval e nem mesmo do ritmo
brasileiro mais característico – que nunca ouviram falar dele ou que não o
tenham ouvido cantar, alguma vez, com aquele seu vozeirão rouco e
característico.
Sou suspeito para
escrever sobre Jamelão, porquanto sou mangueirense convicto e há muitos anos.
Dois dos meus melhores contos, do livro (inédito) “Passarela de Sonhos”, a
“menina dos meus olhos” de tudo o que já escrevi (e olhem que foram tantos
textos que até já perdi a conta), têm essa escola de samba por cenário e por
“personagem”. E há muito não se pode falar de Mangueira sem sequer mencionar a
figura maiúscula de Jamelão. Apesar de sua estreitíssima vinculação com o
Carnaval, e, sobretudo, com a sua escola do coração, ele foi excelente
sambista, gravando composições que foram antológicas no seu tempo, mas que,
infelizmente, caíram no esquecimento, por não terem sido mais tocadas nas
emissoras de rádio. Uma pena!
Tenho, em meu acervo,
em vinil, algumas preciosidades da sua extensa discografia (participou, entre
discos de 78 rotações, LPs, compactos, CDs e DVDs, de 76 gravações), como
“Folhas mortas”, por exemplo, (que tinha, no lado B, a composição “Dengosa”),
datada de 1956, pela gravadora Continental. Outro dos seus sucessos que
mantenho em meu poder (este mais pelo valor histórico), é o samba que gravou,
em 1955, em homenagem ao título conquistado pelo Corinthians no ano anterior,
de “Campeão do Centenário” da cidade de São Paulo. Aviso que não sou corintiano
(sou pontepretano roxo) e não tenho a mais remota simpatia por esse clube. Mas
sempre gostei de Jamelão. Para agradar, porém, a maior torcida do País, ele
gravou, também, no lado B desse 78 rotações (igualmente pela Continental), o
samba “Oração de um rubro negro”. Claro que, por motivos óbvios, o disco vendeu
muito mais em São Paulo do que no Rio de Janeiro.
Jamelão teve que
começar a trabalhar muito cedo, para ajudar no sustento da família,
principalmente depois que seu pai se separou de sua mãe. Natural da Zona Norte,
conheceu a Mangueira por intermédio de um amigo músico, que o levou para
conhecer a escola, pela qual se apaixonou. Foi amor à primeira vista (e creio
que recíproco). Mas não começou a participar dos desfiles como puxador de
samba-enredo, como muitos podem pensar. De início, integrou a bateria, tocando
tamborim. Mais tarde, passou para o cavaquinho. Assumiu a função de principal
cantor da escola apenas em 1949, sucedendo o também célebre (mas jamais tanto
quanto ele) Xangô da Mangueira. Assumiu e não largou mais. Foi o puxador de
samba-enredo mangueirense por 57 anos, recorde que certamente não será batido,
jamais, por nenhum outro. Duvido que seja! E só se afastou dessa função em
2006, já bastante doente e quando estava com 93 anos de idade! Um fenômeno no seu
ramo de atividade, não é mesmo?!
Entre
seus sucessos, cito, sem pestanejar: "Fechei a Porta" (Sebastião
Motta/ Ferreira dos Santos), "Leviana" (Zé Kéti), "Folha
Morta" (Ary Barroso), "Não Põe a Mão" (P.S. Mutt/ A. Canegal/ B.
Moreira), "Matriz ou Filial" (Lúcio Cardim), "Exaltação à
Mangueira" (Enéas Brites/ Aluisio da Costa), "Eu Agora Sou
Feliz" (com Mestre Gato), "O Samba É Bom Assim" (Norival Reis/
Helio Nascimento) e "Quem Samba Fica" (com Tião Motorista). Não foram
só essas composições que freqüentaram as paradas de sucesso, mas são as de que
me lembro (e que não são poucas, convenhamos).
Em quatro
carnavais diferentes (os de 1988, 1989, 1994 e 1998), Jamelão acumulou a função
de puxador de samba-enredo da Mangueira com a da escola de samba paulistana
Unidos do Peruche. E isso quando já estava na casa dos mais de setenta anos,
sem que a idade fosse obstáculo para fazer o que mais sabia e do que mais
gostava. Jamelão, como se vê, deu lições
não somente de sobrevivência, mas, principalmente, de amor à arte que abraçou,
o que fez com competência, com garra e com paixão.
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