Uma Barcelona sombria e
misteriosa
Pedro
J. Bondaczuk
A Barcelona que Carlos
Ruiz Zafón utiliza como cenário para o enredo do seu bem-sucedido romance “O
jogo do anjo” – recém lançado no Brasil pela Editora Objetiva – e também para o
dos dois outros livros que integram a trilogia, “A sombra do vento” e “O
prisioneiro do céu”, não tem praticamente nada a ver com essa metrópole
européia atual, que atrai milhões de turistas do mundo todo e é um dos mais
importantes centros artísticos e culturais da Catalunha, de toda a Espanha e da
Europa. O que descreve é, de fato, essa cidade, mas não como ela é hoje, porém
como era no início da segunda década do século XX, mais precisamente no ano de
1920.
Isso, certamente,
custou-lhe bom tempo de pesquisas. Afinal, ele é um escritor jovem, que sequer
chegou à casa dos 50 anos. E nem é preciso lembrar que nove décadas são um
tempo longo demais para que qualquer aglomeração urbana permaneça quase do
mesmo jeito. Imutável não permanece mesmo, indica a mais comezinha lógica.
Palacetes que eram o
suprassumo da modernidade, por exemplo, naquela época, hoje mostram-se
decadentes e em ruínas. Isso, por mais que tenham sido restaurados e por melhor
que seja sua manutenção. Destaque-se que tais imóveis são mantidos de pé, como
se fossem peças de museu, somente se forem considerados “patrimônio histórico”.
A maioria não é. Provavelmente, portanto, acaba demolida, para dar lugar a
prédios novos e funcionais, principalmente dependendo da área em que se
localizam. Se forem localizados na zona central, não escapam, mesmo, da
demolição, dada a crescente valorização dos terrenos em que se situam.
Muitos dos palacetes de
1920 foram postos abaixo para darem lugar a novas avenidas, com vistas a
desafogar o trânsito, cada dia mais intenso e problemático, como sói acontecer
nas grandes cidades. Se houver fotografia da Barcelona da primeira metade do
século XX e esta for comparada com a metrópole atual, certamente não
encontraremos sequer remota semelhança entre ambas. Ninguém que não saiba do
que se trata se arriscará a dizer que seja a mesma cidade. Mas é. Destaque-se
que no período em que Zafón situa seu enredo, a guerra civil espanhola, com
seus horrores e sua destruição, ainda nem havia ocorrido. O ditador fascista, o
“generalíssimo” Francisco Franco, não havia subido ao poder.
A Europa, que se
recuperava da carnificina da Primeira Guerra Mundial – a de 1914 a 1918 – não
era nem sombra do que é hoje, a despeito da atual crise econômico-financeira.
Eram tempos, diria, mais românticos do que confortáveis e aprazíveis, muito mais incertos e sofridos do que os da
atualidade. Barcelona, portanto, também estava na mesma situação.
O arquiteto que viria a
se tornar símbolo da cidade, Antoni Placid Gaudi i Cornet, ainda estava vivo e
em plena atividade (ele morreu em 10 de junho de 1926). Sua obra mais notável, que hoje atrai
multidões a esse importante porto do Mar Mediterrâneo, o Templo Expiatório da
Sagrada Família, cuja construção havia começado em 1896, ainda estava
inacabada. Aliás, esse belíssimo monumento arquitetônico só foi concluído muito
recentemente, não me recordo se nos anos finais do século XX ou nos iniciais do
XXI.
Já que mencionei Gaudi,
informo, para o leitor que não conheça a extensão da veneração dos catalães e,
principalmente, dos barcelonenses por ele, que está em pleno andamento, no
Vaticano, seu processo de beatificação. Isso mesmo! A população da cidade (e de
outras partes da Catalunha) já o consideram santo e tudo indica que a Santa Sé
irá confirmar isso. A influência da sua arquitetura revolucionária ainda é
visível por toda Barcelona. Zafón, contudo, não cita Gaudi em momento algum e
muito menos sua admirável obra-prima.
Menciona, isso sim, os
vários imóveis em ruínas, que já na época em que situou seu enredo estavam em
decadência e muitos em vias de desabar, como que antecipando sua posterior
demolição. Seu personagem principal, o jovem escritor, caído em desgraça, David
Martin, residia em um desses decrépitos casarões, ligeiramente melhorado, mas
ainda com jeito daquelas “casas fantasmas” tão fartamente descritas por vários
romancistas europeus, notadamente os ingleses. Aliás, na Inglaterra, esse tipo
de imóvel rende bons dividendos aos proprietários, que fazem questão de
mantê-los com aspecto de abandono para
atrair turistas. E atraem muitos. Há gosto para tudo.
A Barcelona de Zafón é
uma cidade sombria, tenebrosa, caracterizada por invernos rigorosos e por dias
sumamente tempestuosos, até para criar clima apropriado para seu enredo, que
oscila entre um realismo nu e cru e um surrealismo que chega a confundir o
leitor. As peripécias do personagem central, David Martin, chegam a lembrar,
embora remotamente, o Fausto, do alemão Johann Wolfgang Göethe. Ou seja, ele
praticamente, também, “penhora” a alma, e em troca de alta soma de dinheiro,
mas com a tarefa de escrever um livro destinado a criar nova religião, com potencial,
portanto, de influenciar milhões de vidas.
No seu caso, porém,
“Mefistófeles” é encarnado por um misterioso editor, um tal de Andreas Corelli,
que a despeito do nome, se diz francês, de quem não há sequer referências no
mundo editorial. É um homem amável e sofisticado, mas cercado de mistério, que
Zafón insinua se tratar de um “fantasma”. É um personagem que causa arrepios.
Essa impressão fica mais forte ainda face ao “milagre” ocorrido com David
Martin, que subitamente se descobre muito doente, com expectativa de apenas
escassos meses de vida. Ao entrar em contato com essa estranha figura, todavia,
miraculosamente se recupera e passa a “vender saúde”.
Confesso que “O jogo do
anjo” é, em todos os aspectos, o livro mais intrigante que já li. Embora o enredo
se pareça (e seja) em muitos pontos inverossímil, ganha verossimilhança com a
criação de personagens tão fortes, humanos, sensíveis e, alguns, até
“apaixonantes”. E todas essas peripécias se desenvolvem em uma Barcelona
fantasmagórica, que não lembra em nada, ou em quase nada, a vibrante e
progressista metrópole européia, que ela de fato é.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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