Sucesso laboriosamente
arquitetado
Pedro
J. Bondaczuk
O passado de Carlos
Gardel antes da fama – o da sua juventude no proletário bairro de Abasto, em
Buenos Aires – não era dos mais exemplares. Muito pelo contrário. O artista que
viria a se transformar emn mito teve, inclusive, várias passagens pela polícia,
por cometer pequenos delitos. Para torná-lo, digamos, mais “palatável” às
elites e aceito em todos os círculos sociais, sua imagem teve que ser
“maquiada” pelos que estavam interessados em sua carreira. E por ele próprio,
lógico. Seu sucesso, destaque-se, não aconteceu por acaso. Foi cuidadosamente
arquitetado e o plano foi desenvolvido com o máximo rigor e persistência. Deu
no que deu.
De início, criou-se,
para Gardel, nova personalidade. Pintaram-no como “bom moço” que, obviamente,
não era. Tolice? Talvez! Suas dezenas de biógrafos desmascaram tudo isso ao
relatarem sua vida. Mas o fato é que essa imagem pré-fabricada funcionou. E
esse passado, que se escondeu por tanto tempo, deslustra o magnífico artista
que foi? Entendo que não. Pelo contrário, o fato de superar as dificuldades da
juventude que superou e de chegar ao patamar que chegou, somente valorizam, e
engrandecem seu talento.
O grande responsável
pela boa imagem de Carlos Gardel, essa que seus fãs aceitam até hoje – omitindo
as burradas e trapalhadas que cometeu na juventude – foi um célebre jornalista,
homem de aguçada inteligência, Angel Le Pera, autor dos maiores sucessos de “El
Zorzal”. Foi ele que orientou Gardel sobre como deveria se apresentar perante o
público. Entre outras coisas, criou-se uma moda, logo seguida pelos amantes do
tango, vertente musical que o ídolo se encarregou de “tirar da sarjeta”.
Deu-lhe status, popularizou-a e a transformou, de ritmo marginal, e apenas
dançante, considerado “coisa de malandro", na expressão musical por
excelência da alma portenha. Le Pera “criou”, para essa estrela em ascensão,
até um linguajar característico, uma maneira especial de sorrir, um jeito novo
de pentear os cabelos, de se vestir e inclusive uma forma própria de ser bom,
“à La Gardel”.
Histórias sobre a
maneira carinhosa com que o astro se relacionava com a mãe foram cuidadosamente
inventadas, divulgadas e espalhadas por toda a parte, na base do eficaz método
do boca a boca. E foram tão verossímeis, que chegaram a comover, até, o célebre
filósofo espanhol José Ortega y Gasset que, em 1916, declarou: “Esse rapaz
colore a dor calada da mãe que sofre com
tal emoção que comove de verdade”. Já então o mito começava a se sobrepor e a
ofuscar a pessoa real, a de carne e
osso. E a tal da opinião pública, quando tem que optar entre o fato e a versão,
costuma sempre escolher a última. E é, quase sempre, a que finda por
prevalecer, mesmo que nem seja sequer verossímil.
Na realidade, o
relacionamento de Gardel com a mãe, que ele chamava publicamente de “mi
viejita”, não diferia em nada dos outros rapazes da sua idade, moradores de
Abasto. Não tinha os gestos de supremo desvelo, até de adoração, que passaram a
ser espalhados (e a todo instante repetidos) como sendo dele. O astro
ascendente, todavia, era inteligente o suficiente para perceber o quanto essa
imagem de “bom moço” o favorecia aos olhos do público. Prova é a antológica
declaração publicitária que escreveu, quando no auge do sucesso: “De nada valem
os aplausos do mundo, se tua santa mãe não te diz: cantaste bem!”. Pura
demagogia, conforme comprovam seus rigorosos biógrafos. Mas foi essa imagem de
bom moço a que ficou no coração e na mente do público que o consagrou.
Consolidado seu
prestígio na Argentina, Carlos Gardel decidiu viajar, para levar o tango além
fronteiras e conquistar, de vez, o que sempre desejou nos anos de vacas magras
da juventude: fama, fortuna e prestígio junto a pessoas importantes. Fez
diversas turnês por quase toda a América Latina e, posteriormente, pela
Espanha, arrebatando multidões por onde passava. Antes, participou de um filme
na Argentina, “Flor de Durazno”, em 1917. Contudo, apenas em 1931 ele viria a
se tornar ator de fato, quando de sua passagem pela França (para muitos, sua
terra natal).
Pouco depois, seria
reclamado por Hollywood, para onde foi. Mas não se deixou manipular pela
máquina que então dominava a que era considerada (e de fato era) a Meca do
cinema mundial. Refiro-me à mesma que estereotipou, anos depois, nossa Carmem
Miranda, fazendo com que ela se transformasse numa espécie de “quitanda
ambulante”, com aqueles abacaxis e bananas na cabeça, inventados pelos
norte-americanos para dar a entender que era daquela forma que as mulheres
brasileiras se trajavam. Óbvio que não era. Nunca foi e nunca será. Mas...
Hollywood criou aquele ridículo clichê, o da baiana, ainda em evidência em
muitas partes do mundo em que o Brasil não é devidamente conhecido e nem
valorizado. Gardel, todavia, escapou dessa armadilha dos estereótipos.
Não se pode negar que,
além de bem orientado e assessorado com competência, “El Zorzal” tinha visão
bem definida do que desejava, de quais eram seus reais objetivos. Enxergava
longe, muito longe, para bem além do seu tempo. Tanto que foi o primeiro cantor
a gravar um disco, quando a indústria fonográfica sequer existia como tal.
Isso, em 1912, bem no início de carreira, quando o gramofone era apenas
curiosidade, se não excentricidade, vista como mero brinquedinho da moda
destinado a ser esquecido como tantos outros. Não era, evidentemente. Mas era o
que se pensava a respeito naqueles anos iniciais do século XX (basta ler as
crônicas da época que se referiam a esse aparelho). As primeiras gravações de
“El Zorzal” foram feitas para a empresa “Columbia Gramophone”, que viria a se
transformar, anos depois, na atual potência multimídia do mundo das
comunicações, a Columbia Broadcasting Systems, mais conhecida como CBS. Gardel,
portanto, arquitetou e construiu seu sucesso, com perícia e persistência. E
mereceu chegar onde chegou.
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