Sunday, May 19, 2013


Da marginalidade à fama

Pedro J. Bondaczuk

O cantor, compositor e ator Carlos Gardel foi criado, desde os dois anos e meio de idade, no populoso bairro proletário de Buenos Aires, Abasto, em que cresceu em meio à miséria e a toda espécie de “más influências” que se possa imaginar. Desde, praticamente, a pré-adolescência, tomou contato com a marginalidade local, freqüentando prostíbulos, salões de jogos clandestinos, bares e outros lugares escabrosos em que nem a polícia se atrevia a entrar. Chegou, até, a ser fichado como marginal.

O jovem Gardel podia ser encontrado com facilidade principalmente no mercado de abastecimento de Buenos Aires, sempre em companhias suspeitas e aprontando alguma estripulia. O local tinha péssima fama por causa de seus frequentadores. Por lá perambulavam todos os tipos que compunham a “marginalia” da cidade, desde gigolôs e prostitutas a policiais corruptos, incluindo jogadores inveterados e perigosos assaltantes, que não hesitavam em matar suas vítimas para surrupiar alguns míseros centavos. É verdade que a presença maior era, logicamente, de comerciantes, que iam a esse entreposto para vender e comprar produtos no atacado.

Hoje em dia, os fãs de Carlos Gardel procuram negar, ou esconder o fato de que o cantor tinha ficha na polícia por delitos que teria praticado na juventude, para não “manchar” sua imagem. Tolice. Em vez de diminuí-lo, esse fato o engrandece, a meu ver, muito mais do que se fosse criado num ambiente requintado, por mostrar como esse artista vencedor saiu, e apenas com o talento que tinha, da pavorosa miséria e da marginalidade, para atingir a glória que pouquíssimos, conseguiram, conseguem ou conseguirão, mesmo sem encarar circunstâncias tão adversas e negativas.

Os crimes que lhe foram imputados foram algumas tentativas de roubo, extorsão contra mulheres e casos de chantagem a comerciantes. Talvez para se livrar de punição a essas infrações, Gardel tenha atravessado o Rio da Prata e se refugiado em Montevidéu, onde começou a cantar. Era, na ocasião, um quase menino, com 17 ou 18 anos de idade (não se tem certeza de qual era). Foi na capital uruguaia que o futuro ídolo “nasceu” para o tango (ou que esse ritmo, derivado da polca e da habanera apareceu em sua vida). Começava ali uma trajetória de sucesso que somente seria interrompida com sua morte, em Medellin, num desastre aéreo ocorrido em junho de 1935.

De volta a Buenos Aires, Gardel começou a cantar nas cantinas, cafés, boates e inferninhos dos bairros periféricos da cidade. Era excepcional no que fazia. Não tardou, por isso, para sua fama se espalhar, e por toda a capital argentina e arredores. O sujeito era bom mesmo no que fazia. Mais do que isso, era um fenômeno. Em pouco tempo ficou conhecido como “El Morocho Del Abasto”. O termo “El Morocho”, como explica Raul Jansen, coube-lhe em alusão à cor amorenada de sua pele e porque gostava de andar na companhia dos raros negros que a oligarquia argentina havia deixado sobreviver aos tantos massacres que promoveu contra eles em determinada ocasião da história nessa cidade. Era, pois, designação pejorativa, mas que Gardel, com seu talento e carisma, transformou em algo “glorioso”.

Mas o apelido mais comum do cantor, que perdura até hoje, passados 88 anos da sua morte, foi, e é, “El Zorzal Criollo” (“Zorzal” significa sabiá em espanhol). Os anos foram passando e seu prestígio não parava de crescer. Recorde-se que na época, nos anos anteriores a 1920, quando iniciou a carreira, o rádio ainda não existia. E quando a primeira emissora foi criada em Buenos Aires, daí é que seu sucesso se consolidou de vez. Ninguém tinha (e, ademais, nem tem hoje) seu timbre de voz “feito de encomenda” para cantar tango “sem aquele sabor açucarado dos cantores que necessitam colar a boca no microfone”, como observou Flávio Tavares, na matéria “Mito e realidade de Gardel, 50 anos depois de sua morte”, publicada no jornal “Folha de S. Paulo”, em junho de 1985.

Aliás, ele foi o primeiro intérprete a cantar, publicamente, esse ritmo, então não tão popular como é hoje. Até então, o tango nunca tivera letra. Era somente uma dança, feita entre homem com homem, e na rua, enquanto os dançarinos esperavam vez para entrar em algum prostíbulo. Era considerada uma coisa “indecente”, não recomendável a pessoas de bem. Existe, ainda hoje, convicção (errônea) entre as pessoas de que o tango é o estilo musical mais popular da Argentina. Não é. Sua popularidade restringe-se à área de Buenos Aires e arredores. No restante do país esse ritmo é superado, e em muito, por outras vertentes musicais como, por exemplo, a milonga, entre tantas outras. O tango surgiu na Argentina apenas em 1886

Em 1915, Carlos Gardel constituiu uma parceria que ficaria famosa, pelas composições que produziu. Foi com o uruguaio José Razzano. A dupla despertou fascínio em setores muito amplos da sociedade, não somente da Argentina, mas do chamado Cone Sul. Extrapolou o ambiente dos cafés fumarentos, dos inferninhos mal freqüentados e das barulhentas cantinas, onde até pouco tempo estivera confinada. A parceria duraria algum tempo, mas o sucesso, de fato, para Gardel só viria após sua união artística com outro parceiro, Enrique Santos Discépolo, mais conhecido como o “Discepolin”. Músico dos mais refinados, esse intelectual reputado, e poeta criativo, era um letrista de enorme sensibilidade, sumamente observador e hábil em captar (e transmitir) os sentimentos de amor e as desventuras e amarguras de todo um povo: o argentino. Por isso, ficou conhecido na Argentina como “O Filósofo do Tango”.

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