Da marginalidade à fama
Pedro
J. Bondaczuk
O cantor, compositor e
ator Carlos Gardel foi criado, desde os dois anos e meio de idade, no populoso
bairro proletário de Buenos Aires, Abasto, em que cresceu em meio à miséria e a
toda espécie de “más influências” que se possa imaginar. Desde, praticamente, a
pré-adolescência, tomou contato com a marginalidade local, freqüentando
prostíbulos, salões de jogos clandestinos, bares e outros lugares escabrosos em
que nem a polícia se atrevia a entrar. Chegou, até, a ser fichado como
marginal.
O jovem Gardel podia
ser encontrado com facilidade principalmente no mercado de abastecimento de
Buenos Aires, sempre em companhias suspeitas e aprontando alguma estripulia. O
local tinha péssima fama por causa de seus frequentadores. Por lá perambulavam
todos os tipos que compunham a “marginalia” da cidade, desde gigolôs e
prostitutas a policiais corruptos, incluindo jogadores inveterados e perigosos
assaltantes, que não hesitavam em matar suas vítimas para surrupiar alguns
míseros centavos. É verdade que a presença maior era, logicamente, de
comerciantes, que iam a esse entreposto para vender e comprar produtos no
atacado.
Hoje em dia, os fãs de
Carlos Gardel procuram negar, ou esconder o fato de que o cantor tinha ficha na
polícia por delitos que teria praticado na juventude, para não “manchar” sua
imagem. Tolice. Em vez de diminuí-lo, esse fato o engrandece, a meu ver, muito
mais do que se fosse criado num ambiente requintado, por mostrar como esse
artista vencedor saiu, e apenas com o talento que tinha, da pavorosa miséria e
da marginalidade, para atingir a glória que pouquíssimos, conseguiram,
conseguem ou conseguirão, mesmo sem encarar circunstâncias tão adversas e
negativas.
Os crimes que lhe foram
imputados foram algumas tentativas de roubo, extorsão contra mulheres e casos
de chantagem a comerciantes. Talvez para se livrar de punição a essas
infrações, Gardel tenha atravessado o Rio da Prata e se refugiado em
Montevidéu, onde começou a cantar. Era, na ocasião, um quase menino, com 17 ou
18 anos de idade (não se tem certeza de qual era). Foi na capital uruguaia que
o futuro ídolo “nasceu” para o tango (ou que esse ritmo, derivado da polca e da
habanera apareceu em sua vida). Começava ali uma trajetória de sucesso que somente
seria interrompida com sua morte, em Medellin, num desastre aéreo ocorrido em
junho de 1935.
De volta a Buenos
Aires, Gardel começou a cantar nas cantinas, cafés, boates e inferninhos dos
bairros periféricos da cidade. Era excepcional no que fazia. Não tardou, por
isso, para sua fama se espalhar, e por toda a capital argentina e arredores. O
sujeito era bom mesmo no que fazia. Mais do que isso, era um fenômeno. Em pouco
tempo ficou conhecido como “El Morocho Del Abasto”. O termo “El Morocho”, como
explica Raul Jansen, coube-lhe em alusão à cor amorenada de sua pele e porque
gostava de andar na companhia dos raros negros que a oligarquia argentina havia
deixado sobreviver aos tantos massacres que promoveu contra eles em determinada
ocasião da história nessa cidade. Era, pois, designação pejorativa, mas que
Gardel, com seu talento e carisma, transformou em algo “glorioso”.
Mas o apelido mais
comum do cantor, que perdura até hoje, passados 88 anos da sua morte, foi, e é,
“El Zorzal Criollo” (“Zorzal” significa sabiá em espanhol). Os anos foram
passando e seu prestígio não parava de crescer. Recorde-se que na época, nos
anos anteriores a 1920, quando iniciou a carreira, o rádio ainda não existia. E
quando a primeira emissora foi criada em Buenos Aires, daí é que seu sucesso se
consolidou de vez. Ninguém tinha (e, ademais, nem tem hoje) seu timbre de voz
“feito de encomenda” para cantar tango “sem aquele sabor açucarado dos cantores
que necessitam colar a boca no microfone”, como observou Flávio Tavares, na matéria
“Mito e realidade de Gardel, 50 anos depois de sua morte”, publicada no jornal
“Folha de S. Paulo”, em junho de 1985.
Aliás, ele foi o
primeiro intérprete a cantar, publicamente, esse ritmo, então não tão popular
como é hoje. Até então, o tango nunca tivera letra. Era somente uma dança,
feita entre homem com homem, e na rua, enquanto os dançarinos esperavam vez
para entrar em algum prostíbulo. Era considerada uma coisa “indecente”, não
recomendável a pessoas de bem. Existe, ainda hoje, convicção (errônea) entre as
pessoas de que o tango é o estilo musical mais popular da Argentina. Não é. Sua
popularidade restringe-se à área de Buenos Aires e arredores. No restante do
país esse ritmo é superado, e em muito, por outras vertentes musicais como, por
exemplo, a milonga, entre tantas outras. O tango surgiu na Argentina apenas em
1886
Em 1915, Carlos Gardel
constituiu uma parceria que ficaria famosa, pelas composições que produziu. Foi
com o uruguaio José Razzano. A dupla despertou fascínio em setores muito amplos
da sociedade, não somente da Argentina, mas do chamado Cone Sul. Extrapolou o
ambiente dos cafés fumarentos, dos inferninhos mal freqüentados e das
barulhentas cantinas, onde até pouco tempo estivera confinada. A parceria
duraria algum tempo, mas o sucesso, de fato, para Gardel só viria após sua
união artística com outro parceiro, Enrique Santos Discépolo, mais conhecido
como o “Discepolin”. Músico dos mais refinados, esse intelectual reputado, e
poeta criativo, era um letrista de enorme sensibilidade, sumamente observador e
hábil em captar (e transmitir) os sentimentos de amor e as desventuras e
amarguras de todo um povo: o argentino. Por isso, ficou conhecido na Argentina
como “O Filósofo do Tango”.
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