Tuesday, May 28, 2013

Do perigo de julgar

Pedro J. Bondaczuk

O ato de julgar ações alheias implica em imensa responsabilidade. Além de intenso preparo, que tem que ser o mais meticuloso possível, o julgador tem que ter bom senso e jamais se deixar levar pelas aparências, que soem ser enganadoras. Precisa, sobretudo, não ter nenhuma espécie de preconceito. Tem que ser objetivo, racional e responsável. Não raro, em suas mãos, está o destino de um ser humano que é igual a ele: sujeito a paixões, a desejos e às mais complexas emoções.

E nós, que não temos essa capacitação técnica (na verdade, não temos nenhuma) para essa atividade, estamos habilitados a julgar, com justiça, as ações alheias? Não preciso sequer refletir muito para responder à questão. É óbvio que não estamos. Porém, a todo o momento, nos metemos a julgar atos alheios, sem sermos convocados para tal, sem ter nem mesmo conhecimento de causa, baseados, somente, no que ouvimos ou lemos na imprensa e sem atentar, principalmente, que podemos estar destruindo reputações e até vidas. Não sabemos distinguir senso crítico de julgamento.

Se não estamos aptos para julgar ações alheias, imaginem julgar intenções! Como saber o que moveu determinada pessoa a cometer algum ato que julguemos, ou que de fato seja reprovável? Ouso dizer que se trata do impossível. Ademais, nossos julgamentos (por mais que tentemos) nunca se vêem totalmente expurgados de preconceitos, ou seja, de conceitos previamente fabricados. E muito menos de imparcialidade.

O escritor italiano Dino Segre, que ficou conhecido pelo pseudônimo de Pitigrilli (que utilizava para assinar seus textos) traçou um perfil humano genérico, não de alguém específico, mas do tipo médio, no qual a maioria de nós se enquadra. Escreveu, no livro "Lições de Amor": "O homem não é nem anjo, nem fera, ou é ambas as coisas em proporções desiguais. A beneficência, a moral, a caridade não podem fabricar homens e mulheres ideais. Devem servir-se daqueles que encontram".

A dúvida que me fica é: será que as pessoas cuja imagem envolvemos em uma aura de santidade eram ou são verdadeiramente santas? Ou as que julgamos sábias, teriam, de fato, tanta sabedoria? Ou, do lado oposto, será que os monstros humanos foram mesmo tão maus como pintados? Provavelmente há exageros, para o bem ou para o mal, para melhor ou para pior, em todas essas avaliações. Mas... como saber? Como distinguir a justiça e a injustiça desses julgamentos?

Entendo que a melhor estratégia para isso é a enunciada pelo filósofo Eduardo Giannetti, no livro “Nada é tudo’ (Editora Campus): “Prefiro a vertigem da dúvida ao tóxico das convicções”. Esse é o tipo de ceticismo que não condeno e que, pelo contrário, recomendo. Dou-lhe o nome de “prudência”. É o procedimento do sábio, do justo, daquele que se horroriza ante a mínima possibilidade de cometer alguma injustiça contra quem quer que seja. Não se trata, como alguns entendem, de ficar “em cima do muro”. Trata-se de aplicar o axioma jurídico, que poucos aplicam, do “in dúbio pro reo” (em sua expressão latina).

Julgar emoções alheias só por reações externas, como gestos, expressões e palavras, é inútil e não raro nos leva a cometer injustiças. Escrevi isso, tempos atrás, em um ensaio, e acrescentei que “elogios enfáticos, por exemplo, que, muitas vezes, recebemos pelo que somos ou fazemos, nem sempre (ou quase nunca) refletem os reais sentimentos dos que elogiam. Não raro o que não diz nada, e que parece ter permanecido indiferente à nossa pessoa e nossos feitos, é exatamente o que mais os apreciou e valorizou. Anos depois, descobrimos isso. Mas já pode ser tarde para repararmos a injustiça de havermos pensado mal do nosso real admirador”. E não são poucas as vezes que cometemos esse tipo de injustiça.

Imaginem, então, o que é julgar intenções alheias! Como saber o que move determinadas pessoas a praticar certos atos nitidamente ilegais ou, no mínimo, imorais? Não vejo como. Prefiro, nestes casos, recorrer à recomendação de Giannetti. Ou seja, entregar-me “à vertigem da dúvida” para não ser afetado pelo “tóxico das convicções” (no caso, as falsas).

Meu saudoso e sábio amigo, Mauro Sampaio, poeta sumamente observador, legou-nos magnífico poema a propósito, que explica porque somos incapazes de julgar emoções e, principalmente, intenções, embora o façamos, estupidamente, a todo o instante. Seu título é “Justiça” e diz:

“No ápice da pirâmide,
se encontram e se irmanam
a sabedoria, a loucura e a tolice.

Só tu, Senhor, as distingues”.

De fato, nossos julgamentos para fazer essa distinção (e outras tantas) são falhos, parciais e, por isso, injustos. Muito do que consideramos o suprassumo da sabedoria não passa de rematada tolice, e vice-versa. O mesmo vale para a  justiça dos nossos vereditos. Não estamos habilitados a julgar ninguém e, por isso, deveríamos nos abster de fazer o que não sabemos e, por isso, não podemos fazer com isenção e imparcialidade.

Aliás, já que mencionei o Mauro (o que sempre me renova a satisfação e o orgulho de ter privado de sua amizade, embora renove, também, a saudade), partilho com você, paciente leitor, mais um poema desse magnífico poeta, com o qual fecho, com chave de ouro, esta descompromissada reflexão:

Julgamento

“Não exortarei o mau.
Não o repelirei.
Me curvarei ante a sua fragilidade.

Não é meu o julgamento”.


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