Morre o homem e nasce o
mito
Pedro
J. Bondaczuk
Os ídolos, como
qualquer ser humano, obviamente também morrem. Dependendo, porém, da idolatria
que lhes seja tributada e das circunstâncias em que morreram, assim que ocorre
a morte física, “nasce”, simultaneamente, o mito. E esse, por sua vez,
sobrevive por séculos, às vezes por milênios, no imaginário popular. Foi o que
aconteceu com o cantor, compositor e ator Carlos Gardel.
Os cronistas do
longínquo ano de 1935 do século XX narram que, na véspera da morte do celebrado
intérprete, ele recebeu a visita de uma garotinha, em Barranquilla, uma das
escalas de sua até então vitoriosa turnê, que disse tê-lo visto, em sonhos,
envolvido por chamas. Conforme essa versão, a menina teria implorado ao ídolo
que não viajasse no dia seguinte, de avião, mas que fosse por terra que era
muito mais seguro. O astro teria, apenas, se limitado a sorrir, sem dar maior
atenção a aquela suposta premonição.
Não se sabe se esse
episódio realmente aconteceu e, em caso positivo, se ocorreu da maneira que foi
narrado. O provável é que se trate de mais uma das tantas lendas que sempre
cercaram a vida (e esta teria cercado também a morte) de Gardel. Acho essa
versão fantasiosa demais para ser verídica. Porém... nunca se sabe.
O cantor empreendia,
então, vitoriosa turnê pelas Américas e tinha programado visitar as principais
cidades da Colômbia, onde o tango, aos poucos, tornava-se popular, e quase
tanto quanto na Argentina. Era comum, por exemplo, ouvirem-se os acordes do
“Mano a mano”, da “La cumparsita”, do “Por uma cabeza”, do “Mi Buenos Aires
querido” ou do “El dia que me queiras”, trauteados por algum transeunte nas
ruas de Bogotá, ou assoviados por alguém em Cali ou em Medellin ou em qualquer
outra grande localidade colombiana.
Nos cafés dos bairros
boêmios, o tango já era o ritmo da moda. Mas não só neles, porém igualmente nas
residências mais luxuosas, em que as pessoas de maior poder aquisitivo
possuíssem vitrola, aparelho que na época estava ao alcance de poucos bolsos,
dado seu alto custo. A chegada de Carlos Gardel a Bogotá, em 14 de junho de
1935, havia sido acontecimento marcante, que reunira frenética multidão no
campo de pouso da capital colombiana, o Techo, para recepcionar o ídolo. O
mesmo entusiasmo se repetiu em outros lugares por onde ele passou naquela
excursão. Os fãs não lhe davam trégua, querendo autógrafos ou alguma lembrança
qualquer, quando não simplesmente tocá-lo, como se fosse algum santo
milagreiro.
Em 24 de junho, dez
dias após seu desembarque na Colômbia, Gardel se dirigiu com destino a Cali,
mas antes teria que fazer escala obrigatória em Medellin, onde não faria
nenhuma apresentação. A aeronave que o transportava era um trimotor Kord F-31,
da empresa aérea colombiana Saco. Integravam a comitiva os guitarristas
Guillermo Barbieri, Domingo Riverol e José Aguillar, além do compositor e
amigo, o paulistano de nascimento Alfredo Le Pera, o tradutor Jose Plaja e o
massagista do astro, Alfonso Azaff.
A chegada foi tranqüila
e sem nenhum incidente. A recepção calorosa que Gardel recebeu foi semelhante à
recebida em outras tantas cidades pelas quais passou. A turnê começara em Nova
York, com passagens pelo Porto Rico, pelas Antilhas e pela Venezuela, e seria
completada na Colômbia, com o posterior regresso a Buenos Aires. Pouco antes de
chegar a Medellin, Gardel havia feito memorável apresentação no Teatro Apolo,
em Barranquilla, num show que marcou época na cidade.
O avião aterrissou por
volta do meio dia no antigo Aeroporto de Las Playas (atualmente denominado de
Olaya Herrera) e o astro decidiu almoçar, com os membros da sua comitiva.
Antes, conversou com um adolescente, de 15 anos de idade, Enrique Bello (que se
estivesse vivo, hoje estaria com 93 anos) que se tornou bem sucedido empresário
do ramo cinematográfico na Colômbia. O rapaz perguntou a Gardel qual era sua
idade. “El Zorzal” brincou com o moço. Chamando-o para um canto, disse: “Mira,
pibe, tengo 44 años, pero no se lo vayas a decir a nadie” (“Olha, menino, tenho
44 anos, mas não vá dizer a ninguém”).
Às 15h10, horário
colombiano (13h10 hora do Brasil), o grupo embarcou, outra vez, no F-31, que
havia sido abastecido com 250 galões de combustível, para dar sequência à
turnê. O momento do embarque, todavia, foi o derradeiro de vida do mito. A
partir daquele momento, sua lenda viria a ser ampliada, com o acréscimo de
fantasias e de exageros, que se somariam aos fatos realmente ocorridos,
compondo uma lenda da qual é muito difícil distinguir a verdade histórica da
ficção. E dezenas de histórias seriam inventadas, nos anos subseqüentes, para
destacar ainda mais uma tragédia já por si só chocante, que dispensa
acréscimos.
O avião começou a
taxiar normalmente na pista. Tudo parecia absolutamente normal. Uma multidão
estimada em pelo menos duas mil pessoas acompanhava a operação de decolagem.
Subitamente, o aparelho guinou para a direita (ninguém jamais soube explicar a
razão) e espatifou-se contra outra aeronave, ainda no solo, a “Manizales”, de
propriedade da empresa Scadia, que aguardava no acostamento, com os motores
ligados, para decolar um pouco depois do avião que conduzia Gardel.
O F-31 explodiu,
envolto em chamas, diante dos olhos da atônita e aterrorizada multidão,
impotente para prestar qualquer tipo de socorro à tripulação e aos passageiros.
No acidente, morreram, carbonizadas, treze pessoas. O desastre foi atribuído a
uma súbita rajada de vento, que teria feito o piloto perder o controle do
avião.
A primeira sepultura de
Gardel foi no Cemitério de San Pedro, em Medellin, onde seus restos mortais
permaneceram por apenas oito meses. Seu velório foi realizado na casa do
Monsenhor Enrique Uribe Ospina e foi marcado por cenas de desespero e de
histeria popular. Mas seus fãs de Buenos Aires não admitiam ficar distantes do
ídolo que veneravam. Providenciaram para que seus restos mortais fossem
trasladados para sua pátria de adoção, à qual sempre jurou amor. Hoje eles
estão sepultados no Cemitério de La Chacarita, local que se tornou até um dos
principais pontos turísticos da capital argentina.
Carlos Gardel, homem de
muitos amores, que tinha propensão à obesidade quando abandonava seus
exercícios de halterofilismo (chegou a pesar 120 quilos), e que era viciado em
corridas de cavalo, morreu solteiro. Nunca se casou, apesar de haver
conquistado o afeto de tantas pessoas. E ganhou o coração não de apenas uma
mulher específica, mas de todo um povo, que o amou extremadamente, enquanto
vivo, e que ainda o ama, posto que, agora, apenas à sua memória. Afinal, mitos
não morrem. Ou, para ser mais exato, tardam a morrer, não raro séculos ou até
milênios.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
No comments:
Post a Comment