Resgate da memória de
um mito
Pedro J. Bondaczuk
A “poeira’ do tempo
torna quase impossível ao historiador traçar o perfil exato, ou pelo menos
aproximado – com o rigor científico que a tarefa requer – dos homens e mulheres
que participaram ativamente da construção da história de um povo mediante obras
e ações. Lendas e mitos misturam-se a fatos. Cabe ao pesquisador separar o joio
do trigo, no afã de chegar à verdade histórica. Como? Trata-se de tarefa
gigantesca, que exige dedicação plena, não raro de toda uma vida e, ainda
assim, sem garantia de sucesso.
Mesmo no que se refere
a fatos, não raro o mesmo acontecimento tem várias versões, conforme quem o
testemunhou e relatou. Em qual delas acreditar? Manda o bom senso que se dê
crédito à mais sóbria, à menos fantástica, à que teoricamente seja pelo menos
verossímil. Ocorre que nem sempre (diria raramente) as coisas ocorrem guardando
um mínimo de lógica. Não raro, a versão que pareça, à primeira vista, a mais
improvável é a verdadeira, comprovada tempos depois por documentos e
testemunhos, e vice-versa. Por isso, encaro a história sempre com um pé atrás.
Nunca dou crédito absoluto ao que se torna consensual (ou quase), por entender
que se trata de uma versão de determinado fato, passiva, portanto, de ser revisada,
quando não desmentida.
Uma das figuras, da
História do Brasil mais fascinantes e mais difíceis de serem analisadas, por
não se saber se parte (ou se tudo) do que se sabe dela é verdadeiro ou não
passa de lenda, é José de Anchieta. E não faltam pesquisas a seu respeito.
Muito pelo contrário. Esse até mítico jesuíta está em vias de se tornar o
segundo santo brasileiro da Igreja Católica (embora não tenha nascido no
Brasil), já que foi beatificado pelo papa João Paulo II em 1980 e seu processo
para a “santificação” está bem adiantado no Vaticano.
Enquanto alguns
historiadores atribuem-lhe a responsabilidade da fundação da cidade de São
Paulo (e não a Manoel de Nóbrega, como outros tantos asseguram ter sido o
fundador), ao mesmo tempo negam-lhe participação na criação do Rio de Janeiro.
A despeito de inúmeras pesquisas (até para fundamentar seu processo junto ao
Vaticano), porém, fatos básicos para
traçar a biografia e o perfil histórico de uma personalidade, como por exemplo,
a data exata do seu nascimento, são, ainda nebulosos e objetos de
controvérsias. Nenhum historiador tem certeza do ano em que Anchieta nasceu.
Sabe-se que José (ou
Joseph, conforme J. Nunes Vilhena assegura que era seu nome de batismo) é
natural do pequeno vilarejo de La Laguna de Tenerife, no arquipélago das Ilhas
Canárias. Alguns afirmam que seu nascimento se deu em 1533. Outros, no entanto,
asseguram que o ano correto foi 1534, coincidindo com o de criação da Companhia
de Jesus, por parte de Inácio de Loyola. Ambas as correntes garantem que têm
documentos que comprovam suas respectivas teses. Alguém, no entanto (diz a
lógica) está errado. Mas quem? Como saber?
A Companhia de Jesus
merece pelo menos um ou dois parágrafos, antes de se abordar, com maiores
detalhes, a vida e a obra de José de Anchieta. Por que? Pela sua importância
política, apesar de se tratar de uma ordem supostamente apenas religiosa. Seu
poder, logo após sua criação, aumentou tanto, a ponto de seus superiores, até
os dias de hoje, serem conhecidos como “papas negros”. A nova ordem visava,
originalmente, a ser uma resposta, uma arma eficaz da contra-reforma, ou seja,
do movimento que visava a combater a reforma protestante promovida por Martinho
Lutero na Alemanha e que se ramificou por vários países da Europa.
A Companhia de Jesus
teve, talvez, sua mais eficiente atuação (claro, do ponto de vista do
Vaticano), nas recém-formadas colônias da Espanha e de Portugal no Novo Mundo.
Destacou-se, sobretudo, no Brasil, para onde eram, originalmente, enviados,
pela Coroa Portuguesa, degredados, os que eram considerados a escória social da
metrópole: ladrões, mendigos,
prostitutas, rufiões e marginais da pior espécie, tidos como irrecuperáveis.
Seu papel era, pelo menos em teoria, o de converter essas pessoas, assim como
os índios da colônia, à fé católica. Foram inúmeras suas rusgas principalmente
com os bandeirantes paulistas, que consideravam a Companhia de Jesus uma rival
política.
No que se refere a José
de Anchieta, num ponto todos os
historiadores convergem: no fato de ele ter nascido em uma família humilde e
profundamente religiosa. Em 13 de julho de 1553, aos 20 anos de idade (ou seria
aos 21?), já monge, embora ainda não ordenado, o jovem noviço desembarcou no
Brasil, na comitiva do segundo Governador Geral, Dom Duarte da Costa, aportando
nessa data em Salvador, na Bahia. Dali, a ordem enviou-o a São Vicente, onde
Martim Afonso de Souza havia iniciado o plantio de cana de açúcar e formado um
importante e relativamente próspero núcleo de colonização. Era um desafio imenso
para aquele moço, quase menino, que revelaria virtudes que o transformariam em
um mito da nossa história.
Quando desembarcou
nesta então vasta e praticamente inexplorada colônia portuguesa, um “deserto
verde” sem fim, praticamente o maior dessa natureza do Planeta, que em menos de
quatro séculos viria a se transformar no Brasil independente, o jovem monge,
praticamente adolescente, havia recém se licenciado pela tradicional
Universidade de Coimbra, grande pólo, na ocasião, de elevados ideais
humanísticos da Europa, onde ingressou em 1548, aprofundando-se nas disciplinas
Dialética, Filosofia, Letras, Latim e Vernáculo. Por ocasião do seu desembarque
na Bahia, fazia, apenas, dois anos que Anchieta integrava a Companhia de Jesus,
ordem em que ingressou em 1551.
É sobre essa figura
fascinante e lendária (sobre a qual já escrevi dois ensaios que, admito, são
inconclusivos pelas razões já expostas) que me proponho a refletir com vocês,
provavelmente sem muito rigor científico (talvez sem nenhum), mas ressaltando,
sobretudo, suas características mais notáveis: grande espírito empreendedor,
elogiável capacidade de iniciativa, natural talento diplomático e, sobretudo,
fé. Foram estas as virtudes que o levaram a participar, de uma forma ou de
outra, da fundação das que hoje são as duas maiores e mais importantes
metrópoles brasileiras: São Paulo e Rio de Janeiro.
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