Sunday, March 24, 2013


Sobretudo humano

Pedro J. Bondaczuk

As aventuras amorosas de Franz Liszt são, hoje, em muitos círculos, mais divulgadas e conhecidas até do que a sua magnífica obra musical, embora não causem mais o escândalo que causaram na época em que aconteceram. Detesto esse tipo de assunto, mas entendo que deva ser divulgado, sim, até para tornar essa figura majestática verossímil aos olhos do leitor. Caso tratasse, apenas, de suas virtudes e méritos (sem dúvida, imensos), o perfil que emergiria do texto pareceria o de personagem de ficção, ideal, sem defeitos, o que, convenhamos, não existe. E se existir... ninguém acreditará que existiu.

Prefiro comentar sobre a biografia de um ser humano, como todos nós, passivo de erros, defeitos e contradições, e não sobre a de uma espécie de semideus, o que Franz Liszt de fato não foi. As pessoas, e não apenas contemporâneas do compositor, mas do nosso tempo (e de todos os tempos) parecem ter mórbida fixação por escândalos e, notadamente, os sexuais, provavelmente como compensação psicológica para sua baixa auto-estima. Ou então, como justificativa para os próprios defeitos, erros e distorções de caráter.

Provavelmente raciocinam assim: “Se um gênio, como Liszt, pôde errar tanto no que se refere a relacionamentos amorosos, por que não posso errar também?”. É um raciocínio equivocado, mas até compreensível (não sei se perdoável). Essas aventuras, frise-se, aconteceram somente depois da morte de Adam Liszt, que mais do que pai, foi amigo, empresário, tutor, protetor e tudo o que de bom vocês possam imaginar para o genial músico. Ele morreu de febre maligna (nenhum biógrafo definiu qual a doença que a causou, pois na época a medicina era um caricato arremedo do que é hoje), em 1826, em Boulogne-sur-Mer, aos 47 anos de idade.

O então jovem adolescente (estava com apenas quinze anos), sozinho, num país que não era o seu (na França), ficou, a princípio, totalmente desorientado. Pudera! Os concertos começaram a minguar. Com menos trabalho, o dinheiro passou a faltar e o pouco que conseguia, acabava num piscar de olhos, como se evaporasse . Franz vislumbrou, na oportunidade, apenas uma única e salvadora saída para custear a sobrevivência: dar aulas de música.

E foi, justamente, uma de suas alunas, Caroline de Saint-Crip, filha do conde de mesmo nome e que era ministro francês do Comércio, que se tornou sua primeira (e provavelmente a maior) paixão amorosa. Ambos amaram-se profundamente, desesperadamente, loucamente, como se aquele romance não fosse se acabar jamais. Um dia acabou. Os pais da moça, quando descobriram o caso, bem que tentaram cortar a ligação afetiva, embora ambos fossem solteiros e desimpedidos. Mas havia a profunda diferença de classe social que, na ocasião, contava muito mais do que ainda conta hoje.

Inicialmente, as tentativas para separar os pombinhos apaixonados revelaram-se inúteis. Apesar de Liszt haver sido demitido da sua função de professor de piano da amada – o que, claro, era de se esperar – os jovens apaixonados sempre arrumavam uma forma de ser comunicar e de se ver. Amor, ah o amor! A condessa, ciente de que a filha jamais deixaria de amar o jovem músico e que nem esse abdicaria da sua musa, em seu leito de morte, como derradeiro pedido, apelou ao conde que consentisse no casamento deles. Em vão. Este manteve-se inflexível e forçou a separação definitiva. Caroline, anos depois, casou-se com alguém da sua classe social e tornou-se a senhora d’Artigaux.

Liszt ficou arrasado. Imaginem um golpe desses para uma pessoa tão sensível como o rapaz era. Parou de comer, praticamente não dormia e não tardou a adoecer. E a doença foi tão severa e renitente, que chegaram a circular por Paris boatos dando conta de sua morte. Até as imprensa cometeu uma gafe enorme a propósito, pois o jornal “L’Etoile” chegou a publicar um necrológio do compositor. Mas ele era jovem, de compleição física privilegiada e se recuperou fisicamente. Mas nunca esqueceu o primeiro amor da sua vida. Tanto isso é verdade que, em seu testamento (redigido 28 anos antes da sua morte), deixou para a amada, na ocasião já casada com outro homem, um valioso anel.

Todavia, a paixão mais tumultuosa (e mais propalada) que Liszt viveu foi com outra condessa, a d’Agoult, casada com o conde Charles. Desafiando o marido, a sociedade, as convenções, os costumes, a moral e tudo o mais, a jovem senhora dedicou profunda afeição (na verdade, tórrida paixão) ao músico, caso que teve nove anos de duração. Inúmeras vezes os dois viajaram juntos, ora para a Suíça, ora para a Itália, isolando-se do mundo.

Desse relacionamento, resultaram três filhas, uma das quais, Cosima (que recebeu esse nome por ter nascido em um chalé à beira do Lago Como), casou, anos mais tarde, com o compositor alemão Richard Wagner. A necessidade de prover o próprio sustento e o das filhas fez com que o casal se visse obrigado a, finalmente, se separar e jamais voltar a se ver.

Mas Franz Liszt parece que tinha fixação por mulheres casadas e que fossem da nobreza. Tanto é que, já quase cinqüentão, juntou-se à princesa Wittgenstein, a polonesa Ellisabeth Carolyne. É certo que na época ela estava separada do marido, por comum acordo. Este, todavia, recusava-se terminantemente a conceder o divórcio, o que impedia que os amantes pudessem se casar. Em 1861, os dois chegaram a pleitear, junto ao Vaticano, a anulação do casamento anterior da princesa. Chegaram, até, a marcar a data do enlace, na Santa Sé, por sentirem disposição favorável das autoridades eclesiásticas à sua solicitação.

O príncipe, todavia, tinha prestígio. E conseguiu influir no espírito do Papa para que revisse o processo de anulação. O casamento de Liszt estava marcado para 21 de outubro de 1861. Um dia antes da data, porém, o Pontífice pediu os documentos do processo de anulação para rever. E não anulou o casamento de Ellisabeth Carolyle.

Um ano depois o príncipe Wittgenstein morreu. Estranhamente, porém, os dois amantes não voltaram a falar em casamento. Cada um deles entrou num convento. Liszt tomou as ordens menores, tornando-se monge. Permaneceu assim nos 21 anos restantes da sua vida. Gerou três filhas, sem que jamais fosse casado. Foi um gênio, na sua especialidade, mas sequer se aproximou da “perfeição” de um semideus, como alguns o pintam. Aliás, isso é que o torna fascinante, por se tratar, sobretudo, de um ser humano, com tudo o que essa condição propicia, para o bem e para o mal. Vocês não acham?!

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