Sobretudo humano
Pedro
J. Bondaczuk
As aventuras amorosas
de Franz Liszt são, hoje, em muitos círculos, mais divulgadas e conhecidas até
do que a sua magnífica obra musical, embora não causem mais o escândalo que
causaram na época em que aconteceram. Detesto esse tipo de assunto, mas entendo
que deva ser divulgado, sim, até para tornar essa figura majestática verossímil
aos olhos do leitor. Caso tratasse, apenas, de suas virtudes e méritos (sem
dúvida, imensos), o perfil que emergiria do texto pareceria o de personagem de
ficção, ideal, sem defeitos, o que, convenhamos, não existe. E se existir...
ninguém acreditará que existiu.
Prefiro comentar sobre
a biografia de um ser humano, como todos nós, passivo de erros, defeitos e
contradições, e não sobre a de uma espécie de semideus, o que Franz Liszt de
fato não foi. As pessoas, e não apenas contemporâneas do compositor, mas do
nosso tempo (e de todos os tempos) parecem ter mórbida fixação por escândalos
e, notadamente, os sexuais, provavelmente como compensação psicológica para sua
baixa auto-estima. Ou então, como justificativa para os próprios defeitos,
erros e distorções de caráter.
Provavelmente
raciocinam assim: “Se um gênio, como Liszt, pôde errar tanto no que se refere a
relacionamentos amorosos, por que não posso errar também?”. É um raciocínio
equivocado, mas até compreensível (não sei se perdoável). Essas aventuras,
frise-se, aconteceram somente depois da morte de Adam Liszt, que mais do que
pai, foi amigo, empresário, tutor, protetor e tudo o que de bom vocês possam
imaginar para o genial músico. Ele morreu de febre maligna (nenhum biógrafo
definiu qual a doença que a causou, pois na época a medicina era um caricato
arremedo do que é hoje), em 1826, em Boulogne-sur-Mer, aos 47 anos de idade.
O então jovem
adolescente (estava com apenas quinze anos), sozinho, num país que não era o
seu (na França), ficou, a princípio, totalmente desorientado. Pudera! Os
concertos começaram a minguar. Com menos trabalho, o dinheiro passou a faltar e
o pouco que conseguia, acabava num piscar de olhos, como se evaporasse . Franz
vislumbrou, na oportunidade, apenas uma única e salvadora saída para custear a
sobrevivência: dar aulas de música.
E foi, justamente, uma
de suas alunas, Caroline de Saint-Crip, filha do conde de mesmo nome e que era
ministro francês do Comércio, que se tornou sua primeira (e provavelmente a
maior) paixão amorosa. Ambos amaram-se profundamente, desesperadamente,
loucamente, como se aquele romance não fosse se acabar jamais. Um dia acabou.
Os pais da moça, quando descobriram o caso, bem que tentaram cortar a ligação
afetiva, embora ambos fossem solteiros e desimpedidos. Mas havia a profunda
diferença de classe social que, na ocasião, contava muito mais do que ainda
conta hoje.
Inicialmente, as
tentativas para separar os pombinhos apaixonados revelaram-se inúteis. Apesar
de Liszt haver sido demitido da sua função de professor de piano da amada – o que, claro, era de se esperar – os
jovens apaixonados sempre arrumavam uma forma de ser comunicar e de se ver.
Amor, ah o amor! A condessa, ciente de que a filha jamais deixaria de amar o
jovem músico e que nem esse abdicaria da sua musa, em seu leito de morte, como
derradeiro pedido, apelou ao conde que consentisse no casamento deles. Em vão.
Este manteve-se inflexível e forçou a separação definitiva. Caroline, anos
depois, casou-se com alguém da sua classe social e tornou-se a senhora
d’Artigaux.
Liszt ficou arrasado.
Imaginem um golpe desses para uma pessoa tão sensível como o rapaz era. Parou
de comer, praticamente não dormia e não tardou a adoecer. E a doença foi tão
severa e renitente, que chegaram a circular por Paris boatos dando conta de sua
morte. Até as imprensa cometeu uma gafe enorme a propósito, pois o jornal
“L’Etoile” chegou a publicar um necrológio do compositor. Mas ele era jovem, de
compleição física privilegiada e se recuperou fisicamente. Mas nunca esqueceu o
primeiro amor da sua vida. Tanto isso é verdade que, em seu testamento
(redigido 28 anos antes da sua morte), deixou para a amada, na ocasião já
casada com outro homem, um valioso anel.
Todavia, a paixão mais
tumultuosa (e mais propalada) que Liszt viveu foi com outra condessa, a
d’Agoult, casada com o conde Charles. Desafiando o marido, a sociedade, as
convenções, os costumes, a moral e tudo o mais, a jovem senhora dedicou profunda
afeição (na verdade, tórrida paixão) ao músico, caso que teve nove anos de
duração. Inúmeras vezes os dois viajaram juntos, ora para a Suíça, ora para a
Itália, isolando-se do mundo.
Desse relacionamento,
resultaram três filhas, uma das quais, Cosima (que recebeu esse nome por ter
nascido em um chalé à beira do Lago Como), casou, anos mais tarde, com o
compositor alemão Richard Wagner. A necessidade de prover o próprio sustento e
o das filhas fez com que o casal se visse obrigado a, finalmente, se separar e
jamais voltar a se ver.
Mas Franz Liszt parece
que tinha fixação por mulheres casadas e que fossem da nobreza. Tanto é que, já
quase cinqüentão, juntou-se à princesa Wittgenstein, a polonesa Ellisabeth
Carolyne. É certo que na época ela estava separada do marido, por comum acordo.
Este, todavia, recusava-se terminantemente a conceder o divórcio, o que impedia
que os amantes pudessem se casar. Em 1861, os dois chegaram a pleitear, junto
ao Vaticano, a anulação do casamento anterior da princesa. Chegaram, até, a
marcar a data do enlace, na Santa Sé, por sentirem disposição favorável das
autoridades eclesiásticas à sua solicitação.
O príncipe, todavia,
tinha prestígio. E conseguiu influir no espírito do Papa para que revisse o
processo de anulação. O casamento de Liszt estava marcado para 21 de outubro de
1861. Um dia antes da data, porém, o Pontífice pediu os documentos do processo
de anulação para rever. E não anulou o casamento de Ellisabeth Carolyle.
Um ano depois o
príncipe Wittgenstein morreu. Estranhamente, porém, os dois amantes não
voltaram a falar em casamento. Cada um deles entrou num convento. Liszt tomou
as ordens menores, tornando-se monge. Permaneceu assim nos 21 anos restantes da
sua vida. Gerou três filhas, sem que jamais fosse casado. Foi um gênio, na sua
especialidade, mas sequer se aproximou da “perfeição” de um semideus, como
alguns o pintam. Aliás, isso é que o torna fascinante, por se tratar,
sobretudo, de um ser humano, com tudo o que essa condição propicia, para o bem
e para o mal. Vocês não acham?!
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