Friday, March 08, 2013


Instrutiva erudição

Pedro J. Bondaczuk

O livro “Renembranças”, do professor Francisco Ribeiro Sampaio – cujo perfil esbocei, posto que resumidamente, em texto anterior – é daqueles que denomino, em uma linguagem particular (toda minha) de “papa fina”. Ou seja, de banquete intelectual sumamente refinado, acessível a poucos paladares. Não é para gostos ignaros, para quem tenha mero verniz de cultura, mas tenha parca leitura (e por isso seja pouco esclarecido), embora não se trate de nenhum tratado de filosofia, ou de física, química etc., mas do gênero memorialístico. É um livro de memórias. E que memórias! Que refinamento na redação! Que manejo competente das palavras! Que perfeição no uso e abuso das regras do idioma!  Pudera! É livro escrito por um filólogo, mesmo não tratando de filologia. Ou seja, é obra de um zeloso especialista do idioma. De quem sabe tudo sobre todas as palavras: origem, transformações, flexões, derivações etc.etc.etc.

Sua leitura e, principalmente, releitura propiciaram-me a oportunidade de “purificar” minha linguagem, de me deliciar com a beleza dessa língua tão magistralmente utilizada por um gênio do porte de  Camões, exibida, por Francisco Ribeiro Sampaio, em toda a sua majestade e pureza. É uma aula de erudição, mas natural no autor. Não é nada forçado. Era essa a maneira dele se expressar no cotidiano. Não há nada, pois, de pedante em sua maneira de escrever, que é nobre, sofisticada, bela e grandiosa.

O livro é erudito desde o título. A palavra “renembrança” é raramente utilizada por qualquer escritor de língua portuguesa. Não conheço nenhum que a tenha usado. Muitos dicionários (a maioria) sequer a registram. Há muita gente por aí que “arrota” cultura, que acha que escreve bem (mas não escreve) que jamais sequer ouviu essa expressão e duvida até da sua existência. Agem como a personagem da célebre fábula “A raposa e as uvas”.  Para os ignaros, cujo vocabulário consiste, quando muito, de mil palavras, se tanto, “renembrança” não existe mesmo. O dicionário dos computadores assinala-a em vermelho, para caracterizar erro. Errado? Ora, ora, ora. Achar que um filólogo, deste porte, iria se equivocar, de forma tão contundente, e ainda mais no título de um livro, é rematada estupidez. O Dicionário Aulete não só registra o termo, como indica sua origem.

Nele consta: “Renembrança - s. f. || (ant.) relembrança, lembrança: Veedes aqui a renembrança que vos eu deixo de mim. (Demanda do Graal, I, c. 8, p. 99, ed. 1944.) F. cp. Remembrança”. E que livro é esse, que “fonte pura” que é, na qual nosso, culto, erudito e precioso mestre foi beber e detectar expressão tão original, rara e desconhecida do vulgo? “Demanda do Graal” é “novela de cavalaria de origem lendária, que corresponde a uma cópia quinhentista de um original do último quartel do século XIII, traduzido do francês para português por Frei João Vivas, mais tarde vertida para castelhano, e que constitui, depois de José de Arimateia e de Merlim, a terceira parte do ciclo do Graal”, informa a enciclopédia eletrônica Infopédia.

E a Infopédia aduz: “Narra as aventuras dos cavaleiros da Távola Redonda e do rei Artur em busca do Graal, o Santo Vaso, onde José de Arimateia teria recolhido o sangue de Cristo. Dos cento e cinquenta cavaleiros, só Galahad (ou Galaaz), filho de Lancelot, alcançará o aperfeiçoamento moral necessário para merecer o Graal. Cristianizando o tema romanceado por Chrétien de Troyes, esta obra apresenta uma intenção religiosa que se afasta do ideal cavaleiresco cortês original”.

Como se vê, comecei a aprender coisas novas, com o livro de Francisco Ribeiro Sampaio, antes mesmo de iniciar sua leitura, com o mero título. Imaginem o quanto aprendi com o conteúdo. E não se trata, reitero, de nenhuma obra especificamente filosófica, posto que eivada da verdadeira e sã filosofia – a ditada pela vida, esta mestra eficaz e implacável –  da primeira à última página.

Livros de memória são, costumeiramente, confundidos com autobiografias. Embora apresentem (ou possam apresentar) características destas, ou seja, episódios da vida do autor, não guardam qualquer ordem cronológica. São meros “estopins” que deflagram reflexões a propósito dos fatos narrados, com as respectivas lições que o memorialista extraiu (e compartilha) deles. E nem precisam ser ocorrências de relevo, dessas dramáticas (ou cômicas, ou até ridículas) que determinam, ou que influenciam, toda a trajetória de uma vida. Aliás, raramente são.

Na maior parte dos casos são lembranças esparsas e ocasionais (ou renembranças, como preferiu o mestre de quem trato) de fatos triviais do dia a dia, desses que a maioria se esquece no minuto seguinte, por não gerarem conseqüências, mas que a memória, caprichosa como é, ás vezes retém por alguma razão (ou mesmo sem ela) e que o escritor perpetua, com a devida justificativa. É como se fossem crônicas, mas bastante extensas, com a extensão de um livro (e às vezes, até, de uma coleção). Há quem sequer considere esse tipo de texto como tendo caráter literário. Equivocam-se, claro. É Literatura sim, e na sua mais lídima acepção. Ainda mais se forem livros redigidos por escritores cultos, eruditos, aptos e competentes, como Francisco Ribeiro Sampaio.

Escrevi, há algum tempo, em determinada crônica das milhares que já produzi: “A memória é nosso real patrimônio, a única coisa que nos resta até nosso derradeiro sopro de vida. Tudo o mais se perde, se esfacela, murcha, fenece e desaparece. Generosa, a memória tem uma característica peculiar: é seletiva. Apaga (ou atenua) as lembranças dos momentos ruins pelos quais passamos, de perdas, aflições e grandes sofrimentos. Em contrapartida, perpetua os episódios felizes, aos quais, além disso, dá um toque todo especial, fazendo com que as alegrias, sucessos e episódios de felicidade nos pareçam maiores e melhores do que de fato foram. Por isso, a memória constitui-se no cerne da nossa personalidade. Devemos cultivá-la com carinho, constância e muito cuidado, pois será ela que irá nos encantar e consolar em nossos derradeiros dias. Jorge Luís Borges constata, num de seus livros: “Somos nossa memória. Somos esse quimérico museu de formas inconstantes, esse montão de espelhos partidos”. E, acaso, não somos?!”

Por que, pois, não a partilharmos com o mundo e não fazermos dela, ou delas (pois tendem a ser múltiplas, quase infinitas) peças literárias de qualidade, que se perpetuem além da nossa vida, pela elegância, competência e criatividade com que as descrevemos? Sim, por que não?! Foi o que fez Francisco Ribeiro Sampaio em suas “Renembranças”, sobre as quais ainda tenho múltiplas observações a fazer. 

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