Prefácio à altura de
obra prima
Pedro
J. Bondaczuk
O livro de memórias
“Renembranças”, obra prima do professor,
escritor, filólogo e, acima de tudo, extraordinário ser humano Francisco
Ribeiro Sampaio é uma preciosidade literária de incomensurável valor, e da
primeira à última página. Mantém a unidade qualitativa em cada capítulo, cada
episódio relatado, cada personagem lembrado.
Embora escrito em linguagem erudita – que era a sua natural, não forçada
e jamais pedante, dada sua imensa cultura e seu domínio incontestável do idioma
– traz passagens ternas da infância do autor, das pessoas que conheceu e que
marcaram sua vida, da sua experiência no magistério, na vida acadêmica, na
política (foi secretário de Cultura de Campinas) e de uma das suas mais visíveis
e permanentes obras (posto que não necessariamente a maior), que foi a
concepção, fundação e direção da hoje tradicional e honorável Academia
Campinense de Letras.
Entre todos os méritos
de “Renembranças”, que são incontáveis, da concepção à efetiva concretização,
destaco o da “humanização” do autor. Para a minha geração, aqui em Campinas,
Francisco Ribeiro Sampaio foi um mito, figura reverenciável, mas inatingível.
Foi uma espécie de paradigma cultural. Todavia, suas memórias desmistificam-no,
desmistificação feita, óbvio, por ele mesmo, revelando aos que não tiveram o
privilégio da convivência com ele uma pessoa simples, afável, equilibrada,
terna, boníssima e, sobretudo, justa e compreensiva em relação aos mais
humildes. Salta das páginas de “Renembranças” um Francisco Ribeiro Sampaio
humano, de carne e osso, com as mesmas dúvidas, anseios e inquietações que
temos o que, em vez de reduzir sua estatura aos nossos olhos, eleva-a muito
mais e a consolida.
Um grande livro requer
prefácio à altura. Exige uma apresentação inteligente, recheada de informações
pertinentes (sobre a obra, o autor e sua motivação), mas na medida certa (nem
longo demais e nem curto e reticente), que prepare o espírito do leitor para as
surpresas positivas que irá encontrar tão logo inicie a leitura. Para essa
tarefa, nenhuma personalidade do meio cultural campineiro era mais indicada do
que a que foi incumbida dessa tarefa.
O escolhido para essa
missão, da qual se desincumbiu com a competência costumeira, foi o ilustre Dr.
Lycurgo de Castro Santos Filho. Para quem vive ou viveu em Campinas, ou está
afeito ao cenário literário do Estado de São Paulo, esse ilustre profissional
da Medicina e intelectual de renome, escritor com 150 livros publicados,
dispensa apresentações. Fazê-lo, para essas pessoas, soa, até, a redundância.
Para quem não o conhece, todavia, sequer de nome, adianto algumas referências.
O Dr. Lycurgo nasceu na
cidade do Rio de Janeiro, em 10 de junho de 1910. Faleceu em Campinas em 23 de
setembro de 1998. Formado na Faculdade Nacional de Medicina do Rio,
especializou-se em Urologia, ramo em que se tornou referência nacional. Foi por
muitos anos professor dessa especialidade na Universidade Católica de Campinas.
Foi docente da cadeira de História da Medicina da Unicamp, uma das mais
renomadas instituições de ensino superior das Américas e do mundo. Com todas
essas atividades e responsabilidades, ainda encontrou tempo para intensa vida
intelectual e literária. Presidiu, por exemplo, a Academia Campinense de Letras
por 16 anos ininterruptos e, findo esse período, foi consagrado como seu
presidente honorário por unanimidade dos seus pares.
Mas não foram apenas
estas as funções que exerceu. Foi dos mais festejados presidentes da Academia
Paulista de Letras e da Academia Paulista de História. Presidiu, também, o
Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. É tido, com justiça, como um dos
maiores historiadores brasileiros. Escritor de estilo ágil, elegante e preciso,
era atração permanente nas instituições que integrou, com preleções instrutivas
e memoráveis.
Como se vê, Francisco
Ribeiro Sampaio foi felicíssimo na escolha do prefaciador do seu
“Renembranças”. O leitor não imagina minha satisfação em poder escrever a
respeito de figuras como estas, que tanto respeito e admiro e que tomo por
paradigmas na minha atividade literária. Só lamento elas não estarem vivas para
receberem esse meu modesto tributo, sincero e pejado de emoção, (que talvez
comprometa sua qualidade, mas não a sinceridade e a espontaneidade). Na época
em que estavam vivas, as circunstâncias não me permitiram declarar-lhes meu
apreço e admiração.
O Dr. Lycurgo – e ele
detestava que o tratasse com essa cerimônia e formalidade quando éramos
companheiros de Academia – inicia da seguinte forma seu magnífico prefácio para
um não menos magnífico livro de memórias: “Tempos inquietos estes, confusos e
agitados. Angustiante e conturbada era de ostentação tecnocrática, de ideias
resumidas, condensadas, de populações concentradas e a amontoadas, de cultura
massificada. Era dos computadores, da velocidade, da corrida através do espaço,
atrás de tudo, atrás do nada. Civilização materialista, achatada, sem rumo, sem
esperança”. Querem descrição mais precisa dos conturbados e aflitivos tempos
que vivemos?
E Lycurgo diz mais: “De
repente, o homem volta-se para o passado. E põe-se a evocar os tempos
pretéritos, anteriores a esta angustiante e conturbada era. E fica fascinado
pelo que rememora. Extasia-se ante a lembrança de cenários e lugares
desaparecidos, de céus estrelados e pássaros que cantavam, de pessoas de outros
costumes e de outros pensares, de fatos
e modos que não mais se repetem, de sentimentos e amores extintos. O homem
torna-se nostálgico. O saudosismo passa a imperar. A evocação deslumbra a mente
e enternece o coração. Uma simples história de amor, uma ‘love story’ emociona
multidões. Ressuscita-se até – e exorciza-se o demônio chifrudo que aterrorizou
gerações. E rememora-se, e vêm à tona as ‘renembranças’ das paisagens agrestes,
dos ingênuos amores juvenis, dos alegres cantares, dos tipos singulares”.
Como gosto deste estilo
elegante, claro, límpido, preciso e cirúrgico! Como o idioma que cultuo e do
qual faço ferramenta da minha comunicação se mostra belo, expressivo e
inigualável nos textos de quem realmente sabe escrever! E Francisco Ribeiro
Sampaio e seu prefaciador, Dr. Lycurgo de Castro Santos Filho sabiam-no de
sobejo.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
No comments:
Post a Comment