Saturday, March 02, 2013


Resta saber quem deve o quê para quem


Pedro J. Bondaczuk
  
A África, pelo menos na História contemporânea, sempre foi um continente castigado: pelos homens e pela natureza. Mais pelos primeiros (e, especificamente, os civilizados europeus) que sob o pretexto de levarem a fé cristã e o processo civilizatório ocidental para  aquela área, então considerada selvagem, expropriaram, descaracterizaram culturalmente e por fim escravizaram os seus habitantes.

A partir do século XV, quando os navegadores portugueses e espanhóis lançaram-se aos mares, em missões de descobrimento, foram parar na África. Na oportunidade, mal o continente estava saindo do autêntico furacão, que foi a conquista otomana, que arrasou impérios prósperos e florescentes, como a notável civilização de Zimbabwe, que durou de 900 até 1750, onde hoje existe um país de igual nome. Ou o notável reino de Gana, cuja capital, Timboctu, conhecida como “terra do ouro”, chegou a abrigar um milhão de habitantes, entre os anos 1000 e 1240 de nossa era. Ou então o império que o sucedeu, o de Songai, que teve o domínio de toda a África Ocidental.

Ainda está para ser contada a história verdadeira dos incontáveis malefícios que os europeus fizeram aos povos africanos. Principalmente a partir de 1885, há cem anos, portanto, quando através do Tratado de Berlim, o continente foi partilhado por 14 países: Prússia, Rússia, Império Austro-Húngaro, Grã-Bretanha, França, Império Otomano, Suécia, Bélgica, Itália, Holanda, Portugal, Dinamarca, Noruega e Espanha.

Essa vergonhosa partilha aconteceu, abertamente, a partir de 26 de fevereiro desse ano. Mas, de fato, começou vários séculos antes. E o que África lucrou com esse “processo civilizatório”?

Foi espoliada até o recente período de descolonização, iniciado a partir, apenas, de 1960, há somente 25 anos, portanto. Teve sua cultura descaracterizada. As fronteiras das diversas nacionalidades foram embaralhadas, fazendo com que etnias secularmente rivais tivessem que viver num mesmo território, imposto aleatoriamente.

E, para culminar, o mercado financeiro internacional enfiou, de uns dez anos a essa parte, goela abaixo dos africanos, os excedentes de capitais gerados pelos petrodólares, após o segundo choque do petróleo (que elevou o preço do barril do produto a até US$ 34) a taxas de juros simplesmente escorchantes.

Conseqüência? Hoje os paupérrimos 50 Estados africanos devem, em conjunto, US$ 170 bilhões. O leitor, acostumado a cálculos, pode estar raciocinando: o que é esta dívida externa, quando comparada com os US$ 970 bilhões devidos pelo Terceiro Mundo? Afinal, isso representa, apenas, 18% do total! E somente o Brasil deve, sozinho, quase essa quantia.

Mas se for levado em consideração que a maior parte desses países tem populações com rendas per capita anuais de US$ 110 (como o Chade), de US$ 130 (como Moçambique) ou de US$ 140 (como a Etiópia), qualquer pessoa irá concluir que é uma verdadeira covardia exigir a restituição desse dinheiro, de resto já espoliado através de séculos do continente. Ainda mais quando se sabe que dessas 50 comunidades nacionais, 33 passaram por um brutal período de secas e por uma selvagem fome, que ainda assola a 550 milhões de seres humanos nesse desvalido recanto do Planeta e que matou uma quantidade que jamais será quantificada.

Essa foi a civilização, dita cristã, que os europeus impingiram à África. “Sem derramamento de sangue”, argumentam os defensores desse processo predatório. “De europeus, evidentemente”, acrescentamos nós.

Milhões e milhões de africanos pereceram, longe de sua terra natal, acorrentados em fétidos porões de navios negreiros e reduzidos a uma condição abaixo da animal. Com seus braços construíram países, alguns dos quais os discriminam nos dias de hoje. E ainda querem que eles paguem alguma dívida! Afinal, colocando tudo isso na balança, é caso de se perguntar: quem deve a quem?

(Artigo publicado na página 9, Internacional, do Correio Popular, em 20 de julho de 1985).

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