Resta saber quem deve o quê para quem
Pedro J. Bondaczuk
A África, pelo menos na História contemporânea, sempre foi
um continente castigado: pelos homens e pela natureza. Mais pelos primeiros (e,
especificamente, os civilizados europeus) que sob o pretexto de levarem a fé
cristã e o processo civilizatório ocidental para aquela área, então considerada selvagem,
expropriaram, descaracterizaram culturalmente e por fim escravizaram os seus
habitantes.
A partir do século XV, quando os
navegadores portugueses e espanhóis lançaram-se aos mares, em missões de
descobrimento, foram parar na África. Na oportunidade, mal o continente estava
saindo do autêntico furacão, que foi a conquista otomana, que arrasou impérios
prósperos e florescentes, como a notável civilização de Zimbabwe, que durou de
900 até 1750, onde hoje existe um país de igual nome. Ou o notável reino de
Gana, cuja capital, Timboctu, conhecida como “terra do ouro”, chegou a abrigar
um milhão de habitantes, entre os anos 1000 e 1240 de nossa era. Ou então o
império que o sucedeu, o de Songai, que teve o domínio de toda a África
Ocidental.
Ainda está para ser contada a
história verdadeira dos incontáveis malefícios que os europeus fizeram aos
povos africanos. Principalmente a partir de 1885, há cem anos, portanto, quando
através do Tratado de Berlim, o continente foi partilhado por 14 países:
Prússia, Rússia, Império Austro-Húngaro, Grã-Bretanha, França, Império Otomano,
Suécia, Bélgica, Itália, Holanda, Portugal, Dinamarca, Noruega e Espanha.
Essa vergonhosa partilha
aconteceu, abertamente, a partir de 26 de fevereiro desse ano. Mas, de fato,
começou vários séculos antes. E o que África lucrou com esse “processo
civilizatório”?
Foi espoliada até o recente
período de descolonização, iniciado a partir, apenas, de 1960, há somente 25
anos, portanto. Teve sua cultura descaracterizada. As fronteiras das diversas
nacionalidades foram embaralhadas, fazendo com que etnias secularmente rivais
tivessem que viver num mesmo território, imposto aleatoriamente.
E, para culminar, o mercado
financeiro internacional enfiou, de uns dez anos a essa parte, goela abaixo dos
africanos, os excedentes de capitais gerados pelos petrodólares, após o segundo
choque do petróleo (que elevou o preço do barril do produto a até US$ 34) a
taxas de juros simplesmente escorchantes.
Conseqüência? Hoje os paupérrimos
50 Estados africanos devem, em conjunto, US$ 170 bilhões. O leitor, acostumado
a cálculos, pode estar raciocinando: o que é esta dívida externa, quando
comparada com os US$ 970 bilhões devidos pelo Terceiro Mundo? Afinal, isso
representa, apenas, 18% do total! E somente o Brasil deve, sozinho, quase essa
quantia.
Mas se for levado em consideração
que a maior parte desses países tem populações com rendas per capita anuais de
US$ 110 (como o Chade), de US$ 130 (como Moçambique) ou de US$ 140 (como a
Etiópia), qualquer pessoa irá concluir que é uma verdadeira covardia exigir a
restituição desse dinheiro, de resto já espoliado através de séculos do
continente. Ainda mais quando se sabe que dessas 50 comunidades nacionais, 33
passaram por um brutal período de secas e por uma selvagem fome, que ainda
assola a 550 milhões de seres humanos nesse desvalido recanto do Planeta e que
matou uma quantidade que jamais será quantificada.
Essa foi a civilização, dita
cristã, que os europeus impingiram à África. “Sem derramamento de sangue”,
argumentam os defensores desse processo predatório. “De europeus,
evidentemente”, acrescentamos nós.
Milhões e milhões de africanos pereceram, longe de sua terra natal, acorrentados em fétidos porões de navios negreiros e reduzidos a uma condição abaixo da animal. Com seus braços construíram países, alguns dos quais os discriminam nos dias de hoje. E ainda querem que eles paguem alguma dívida! Afinal, colocando tudo isso na balança, é caso de se perguntar: quem deve a quem?
(Artigo publicado na
página 9, Internacional, do Correio Popular, em 20 de julho de 1985).
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