O "vírus" que ameaça a
humanidade
Pedro J. Bondaczuk
Os gravíssimos episódios de violência verificados
nos últimos quatro dias no gigantesco gueto negro de Crossroads, nas cercanias
da cidade sul-africana de Capetown (Cidade do Cabo), foram muito bem definidos
pelo embaixador norte-americano na África do Sul, Herman Nickel. O diplomata
classificou os incidentes de "um desastre humano de grandes
proporções".
Certamente ele quis referir-se apenas aos prejuízos
visíveis, que já não são dos menores. Até aqui, 26 pessoas morreram nessas
batalhas campais, cujo estopim foi mais o desespero gerado pela vida miserável
que os moradores desse local levam, do que qualquer reivindicação política
específica.
Além dessas quase três dezenas de mortos (e as
cifras tendem a crescer dramaticamente assim que os escombros dessa enorme
favela forem removidos), há cinqüenta mil desabrigados, que ficaram sem nenhum
bem que lhes pertença, a não ser seus próprios corpos.
É evidente que na raiz de tudo isso está um sistema
racista odioso, que diferencia as pessoas não por aquilo que elas têm de mais
nobre e grandioso, que é a sua capacidade de pensar, mas por detalhes
insignificantes, como a cor de sua pele ou a raça a que pertencem.
De tão estúpido que é tal diferencial, se torna dispensável
qualquer reflexão a respeito. Mas nunca é demais repisar o assunto, para abrir
os olhos dos preconceituosos e insensatos, que abundam por aí, não apenas na
África do Sul ou alhures, mas na vizinhança da nossa casa e até no seu
interior.
O ser humano, antes de se valer de sistemas cínicos,
que ele próprio cria para o proveito de minorias parasitárias, deveria,
primordialmente, se conscientizar da sua transitoriedade. Dessa forma (quer se
admita ou não), na realidade ninguém é dono de nada, já que não há aquele que
viva tempo suficiente para usufruir dos bens supérfluos pelos quais se rebaixa
a uma condição inferior à dos mais broncos dos animais.
Mata, rouba, falseia, prende, agride e espezinha
semelhantes mais fracos para obter, e tentar conservar, fortunas acumuladas
numa geração, que certamente serão "dissolvidas" na seguinte. Ou,
quando muito, nas duas ou três posteriores.
Quem conhece alguém que tenha acumulado riquezas,
digamos, há trezentos anos (tempo que em termos históricos equivale quase que a
simples fração de segundos) e cujos descendentes ainda conservem integralmente
esses bens ou se identifiquem com esse antepassado que os beneficiou?
Mas já que as regras do "jogo da vida" são
as que determinam a busca desesperada por propriedades "que as traças roem
e o tempo reduz a pó", que pelo menos elas sejam válidas para todos e
exercidas com lealdade, como convém a um ser com o poder de raciocínio. Que o
mais competente, esforçado e capaz tenha o sucesso que merece, sem falcatruas,
negociatas, corrupções ou discriminações entre os "competidores",
baseadas apenas em argumentos tão inconsistentes e estúpidos como a cor da pele
ou a raça. É óbvio que não é isso o que acontece.
Essa subversão de valores, que se agrava à medida em
que os preconceitos se cristalizam, é exatamente o "vírus" que
provoca todas as "doenças sociais". É o "microorganismo"
deletério que se infiltra no coração do homem e o torna foco de aberrações e
injustiças, do qual a violência é apenas uma espécie de "febre", ou
seja, o sintoma da moléstia, não o próprio mal.
Quem conhece Capetown – ou por fotografias, ou por
ter passado por lá, ou mesmo através de vídeos, filmes ou documentários – sabe
que se trata de uma cidade muito bonita, acolhedora e próspera. Nos seus
arredores, porém, está esta chaga, significativamente chamada de "caminhos
cruzados" (Crossroads), microcosmo de todas as desgraças, injustiças e
prepotências, tão comuns no mundo todo. Inclusive na nossa vizinhança. Nós é
que já estamos tão insensibilizados diante dessa miséria, que muitas vezes nem
nos damos conta de que, através da omissão, somos cúmplices e estamos
contribuindo para que esses males se perpetuem.
O que vem ocorrendo em Crossroads, e que já
aconteceu em outros guetos – como o Soweto, por exemplo – da própria África do
Sul, e nas favelas de outras grandes aglomerações urbanas, é um pequeno exemplo
do que poderá ocorrer, se alguma coisa não for feita para corrigir as
distorções, com dois terços da humanidade.
Sessenta e sete por cento dos habitantes do Planeta
vivem na indigência, enquanto os poderosos pretendem gastar, apenas neste ano,
a monstruosa quantia de US$ 1 trilhão em armamentos de todos os tipos, do
convencional ao nuclear. As armas químicas, proibidas pela Convenção de Genebra
de 1925, recomeçarão a ser fabricadas em breve. Enquanto isso, o fruto do
trabalho de multidões vai parar, por meios na maior parte das vezes ilícitos,
nas mãos de minorias parasitas, ociosas e arrogantes, que sequer têm a
capacidade física para usufruir tanta riqueza ilegítima plenamente, mas que a
acumula apenas por acumular...
(Artigo
publicado na página 9, Internacional, do Correio Popular, em 23 de maio de
1986)
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
No comments:
Post a Comment