Monday, March 25, 2013


Prolífico artífice de melodias

Pedro J. Bondaczuk

A obra de Franz Liszt é vastíssima e virtualmente impossível de ser catalogada, em sua totalidade, a despeito dos seus herdeiros, e dos curadores do seu patrimônio artístico, não pouparem esforços para isso. É um dos raros casos de um compositor que aliou à reconhecida qualidade de suas composições, a quantidade, sem que a primeira sofresse qualquer perda. Pode-se dizer dele, sem exageros, que se tratou de prolífico artífice de melodias. Estima-se que haja composto, no mínimo, pelo menos duas mil peças eruditas. Há quem entenda que esse número seja muito maior.

Como orquestrador, fez arranjos para praticamente todas as composições relevantes, dos mais consagrados autores dessa música atemporal, denominada de clássica. E o que dizer da sua aptidão como instrumentista? Tudo o que se disser, sempre será pouco. Há consenso a esse respeito de que se tratou de um dos melhores pianistas de todos os tempos, bem como harmonista por excelência. Teve audácia para inovar conceitos e foi sumamente bem sucedido nessas inovações, além de ser o criador dos chamados poemas sinfônicos, de intensa beleza, quer pela melodia, quer pela perfeição e harmonia. Não se pode, jamais, falar em piano sem que o nome de Franz Liszt venha imediatamente à baila.

As suas “Rapsódias Húngaras” causaram, em determinada ocasião, grande polêmica entre os estudiosos, que estavam em dúvida se eram composições suas ou se canções folclóricas tradicionais e muito antigas, dos ciganos da Hungria. A dúvida, apenas, foi desfeita com o surgimento, no cenário da música erudita, de Bella Bartok, no início do século XX, que sistematizou as canções tradicionais desse país, entre as quais não se incluíam as Rapsódias.

Mas Liszt não deixou de incorporar em suas composições (num total de 17 peças sobre o tema) vários elementos dos sons maravilhosos criados pelos ciganos da Hungria, que eram de domínio popular. A bem da verdade, ele viveu pouquíssimo em sua terra natal. Visitou-a, e em ocasiões bastante especiais, cinco ou seis vezes se tanto, em toda a vida.  Sequer conhecia o idioma do país!

Quando já consagrado, foi homenageado, certa feita, pela nobreza húngara, com requintado banquete, que contou com a presença das mais ilustres personalidades locais. No momento de agradecer a lembrança, todavia, Liszt teve que recorrer à língua que lhe era mais familiar que, no entanto, não era a magiar. Fez, conforme ele próprio destacou na ocasião, “um discurso francês pela língua, mas húngaro pelo coração”.

Citar alguma composição desse virtuose em particular é muito complicado, já que o conjunto de sua obra é de qualidade idêntica, ou seja, altíssima. Destaco, por questão de preferência, seus quatro oratórios, “Santa Isabel”, “São Stanislau”, o qual não chegou a completar, “Christus” e o mais notável deles, “Via Sacra”. Memoráveis são, também, suas sinfonias, como a que dedicou a Dante Aligheri, inspirada na “Divina Comédia”, e a dedicada a um dos maiores poetas românticos de todos os tempos, Johann Wolfgang Göethe, intitulada “Sinfonia de Fausto”. Compôs, ainda, “lieders”, peças de música de câmara, sonatas e uma infinidade de rapsódias com influência do folclore húngaro, mais especificamente, dos ciganos da sua terra natal.

Destaque-se que Liszt bebeu inspiração em quase todos os grandes poetas clássicos europeus. Foi um gênio aberto ao mundo, que soube entender e, principalmente valorizar as obras alheias. Inclusive a de um Luigi Cherubini, que um dia lhe barrou o ingresso no Conservatório de Paris, quando ainda menino, aos doze anos de idade. Foi uma pessoa generosa, grata, humilde, que sabia fazer amigos e, principalmente, conservá-los, o que é muito mais difícil. Dante, Petrarca, Hugo, Byron, Lamartine e tantos outros grandes poetas serviram de fontes de inspiração para ele criar sons inusitados, precisos, harmoniosos, vibrantes e inesquecíveis.

Em 1886, o espírito e o corpo de Liszt entravam em irremediável declínio. Passara os últimos 21 anos encerrado em um mosteiro, como monge. Mesmo alquebrado e adoecido, ainda teve forças e disposição para assistir às festividades promovidas por uma entidade chamada “Europa Musical”, em homenagem aos seus 75 anos de vida. Mas estava no fim. Conseguiu viajar a Bayreuth, na Alemanha, para assistir ao casamento de uma neta, filha de Cosima com o magnífico e controvertido compositor alemão Richard Wagner, seu genro. Não deveria ter feito essa viagem.

Naquela cidade, contraiu pneumonia. A doença foi fulminante para seu organismo debilitado. A despeito de todos os cuidados que lhe foram dispensados, não resistiu e morreu em Bayreuth, aos 75 anos de idade na madrugada de 31 de julho para 1º de agosto de 1886. No derradeiro momento, ainda teve último gesto de generosidade, legando todos seus bens à princesa de Wittgenstein, seu derradeiro grande amor, com a qual quase se casou, cuja filha foi a criadora da “Casa de Liszt”, tão visitada pelos seus admiradores e principalmente pelos estudiosos e amantes da sua soberba obra musical. Suas composições consagram um homem que amou a Deus, às mulheres e, sobretudo, à música. E que é, em contrapartida, amado e justamente admirado por gerações e mais gerações, tanto pelo que foi, quanto, e principalmente, pelo que fez.

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