Menino comove o velho
Beethoven
Pedro
J. Bondaczuk
A estréia oficial de
Franz Liszt no seletivo mundo dos concertos se deu quando tinha, somente, de
onze para doze anos de idade. A essa altura, já dominava por completo o
instrumento de sua predileção, o piano, e executava as peças mais complexas e
sofisticadas com perfeição e, sobretudo, com paixão. Não havia crítico, por
mais severo que fosse, que lhe fizesse a menor restrição. Liszt aliava, à
técnica apuradíssima, um máximo de emoção, que transmitia à platéia e a
“contagiava”.
A primeira apresentação
para valer – já havia participado de diversos saraus, mas em salões
particulares, com público restrito e selecionado – deu-se em abril de 1823, no
suntuoso e sofisticado Palácio Aumgarten, construção em estilo barroco situada
no distrito de Leopoldstadt, em Viena, que na atualidade é uma das grandes
atrações turísticas da capital austríaca. Fez, ali, duas memoráveis
apresentações.
Antes da primeira,
resolveu que um mestre que já era mito do mundo da música erudita, que
admirava, no qual buscava se espelhar e que iria estimar por toda a vida,
Ludwig van Beethoven, tinha que estar presente. Para isso, precisava ser
convidado. O garoto resolveu que faria o convite pessoalmente, a despeito da fama que o autor da “Nona
Sinfonia” já gozava de ser um sujeito esquisito e temperamental (esquisitices
atribuídas à sua progressiva surdez). Coisas de gênio. Vencendo a natural
timidez, Franz foi à casa do consagrado compositor, cheio de esperança.
Decepção! Foi recebido não só com frieza, mas com hostilidade e grosserias.
Ao convite que fez a
Beethoven, para que assistisse à sua apresentação de estréia, ouviu um “não”
azedo e irritado. O que fazer? Nada, não é mesmo? Embora decepcionado com a
recusa do famoso compositor, que não compareceu a esse concerto, Liszt teve
performance primorosa. Recebeu os mais rasgados e entusiásticos elogios da
crítica. É certo que muitos analistas, mais cautelosos, decidiram esperar novas
apresentações do jovem virtuose antes de emitir opinião.
Após o segundo concerto
no palácio de Aumgarten, todavia, não houve como não se render às evidências. A
performance foi ainda melhor do que a da estréia, que já havia sido
irrepreensível. Foi a definitiva consagração de Liszt.
Mas não foram os
elogios da crítica, posto que muito bem vindos, que mais satisfizeram o menino
prodígio. Não se sabe lá por qual razão, Beethoven, que havia recusado o
convite para os dois concertos, decidiu comparecer, sem aviso prévio, à segunda
apresentação. Queria ouvir pessoalmente (enquanto isso ainda era possível) o
virtuose de quem tanto falavam. Não se sabe o que esperava, mas presume-se que
não era nada de bom. Mas Beethoven não se arrependeu de ter ido ao concerto.
Intempestivo, como era,
o velho compositor não se conteve ao final da última execução de Liszt.
Visivelmente emocionado, “transtornado”, conforme o testemunho posterior dos
que presenciaram a cena, quase chorando, o normalmente sisudo gênio deixou de
lado seu mau humor e sua hipocondria para protagonizar momento histórico.
Saltou para o estrado do teatro e, publicamente, demoradamente, abraçou,
comovido, o menino pianista. O salão de concertos quase veio abaixo de
entusiasmo, com os gritos e aplausos da platéia, em delírio. Assim, como A.
Tenório D’Albuquerque ressaltou, em seu livro “100 Músicos Imortais” (citando a
biografia “Liszt Erster Teil”, de Ludwig Nohl) “Beethoven repetia, no mesmo
local, o que fizera há 36 anos com Mozart”.
Após conquistar
celebridade na Áustria, de repente, Viena tornou-se demasiadamente pequena para
o talento do pequeno gênio. Por decisão do pai, que atuava como uma espécie de
seu empresário, partiu em turnê, para conquistar as platéias mais sofisticadas
e exigentes da Europa. Destaque-se e reitere-se que Liszt, na ocasião, tinha
somente doze anos de idade. Colheria ainda, ao longo de vitoriosa, porém
estafante carreira, muitos outros triunfos.
Mas a vida de um
artista, por mais genial que seja, não se caracteriza apenas por sucessos.
Fracassos, frustrações e decepções de toda a sorte têm que ser esperados, pois
acontecem – para uns mais e para outros menos, mas praticamente ninguém é
poupado. Nessas ocasiões, o que mais a celebridade que cai em desgraça precisa
é de amigos, mas leais e sinceros, que se façam presentes nos momentos de
aflição e de maior necessidade. O mais comum é os que mais juram amizade se
afastarem quando os fracassos ocorrem, deixando o artista sozinho e atarantado
com seus problemas e frustrações.
Neste aspecto, porém,
Liszt foi felicíssimo. Teve um talento ímpar de conquistar amigos que nunca o
abandonaram, quer na alegria (o que, óbvio, é fácil), quer, e principalmente,
nas tristezas. Para tanto, contou, decisivamente, a sua atitude em relação ao
próximo. Explico.
A vida de Liszt, se bem
que cheia de aventuras amorosas sumamente reprováveis pelos critérios morais da
época, revelou algo muito positivo em sua conduta, fruto de um caráter reto e
elogiável: a lealdade para com os amigos. E, por ser leal, tinha o direito de
exigir o mesmo dos outros. Na verdade, nem precisou. Ademais, outra
característica mencionada pelos que conviveram com esse gênio é um enorme
espírito de gratidão.
Vejam o que ele fez com
Beethoven. Se o genial autor das sinfonias (das quais as mais famosas são a
“Quinta” e a “Nona”) tem um dos mais belos monumentos em sua memória, e
justamente em sua cidade natal, Bonn, isso se deve à lembrança e aop empenho de
Franz Liszt, que arrecadou dinheiro para financiar a obra, em concertos e mais
concertos para esse fim, mesmo quando sua saúde já estava seriamente abalada. A
gratidão, convenhamos, é um sentimento raro. Mas esse gênio da música esbanjava
essa virtude. Não há, como se vê, como não gostar de pessoas assim, por mais
defeitos que tenham e por maiores que sejam as loucuras que cometam.
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