Friday, March 01, 2013


Coragem e fé no derradeiro momento

Pedro J. Bondaczuk

O naufrágio do Titanic teve, como ocorre em quase todas as tragédias que envolvem tantas pessoas como as que estiveram envolvidas nesse centenário desastre (os 1523 mortos e os pouco mais de 700 sobreviventes), seus vilões e seus heróis. Dos primeiros é mais justo não falar nada, posto que nunca tiveram (óbvio) condições de se defender e de apresentar suas respectivas versões, justificando ou pelo menos tentando justificar seus atos. Dos segundos, foi dito e escrito quase tudo. Afinal, há centenas de livros sobre essa tragédia no mar, além de reportagens divulgadas em todo o tipo de veículo de comunicação e filmes (documentários e de ficção), além de seriados de televisão. Presumo que não haja nada de novo, nenhuma revelação jamais feita por alguém, a escrever ou a dizer.

Quando me propus a redigir esta série de textos sobre o naufrágio do Titanic – aceitando o desafio que me foi proposto pelo leitor André de Oliveira – minha intenção era a de apresentar ângulos se não novos, pelo menos pouco explorados, ou mesmo inexplorados, dessa tragédia. Creio ter sido razoavelmente bem sucedido. Mas sinto-me na obrigação de abrir justa exceção. Ou seja, a de abordar um ato de heroísmo de oito homens, oito artistas, constante em praticamente todos os livros e todos os textos, filmes (inclusive no mais célebre e de maior sucesso deles, o dirigido por James Cameron e estrelado por Leonardo di Caprio)  e reportagens sobre o naufrágio. Refiro-me ao literal supremo sacrifício dos membros da banda do Titanic.

Seus nomes e seu incomparável ato de amor pela arte que praticavam (e pelas pessoas, o que é importante destacar) têm que ser exaltados, para que não sejam nunca esquecidos e sirvam de exemplo e inspiração para todas as gerações. São eles: Wallace Hartley (o maestro do conjunto, nascido na cidadezinha inglesa de Colne), W. T. Brailey (de Londres), R. Bricoux (de Lille, na França), J. F. Clarcke (de Liverpool), J. L. Hume (de Dumfries), G. Krins (de Liége, na Bélgica), P. C. Taylor (de Londres) e J. W. Woodward (de Headington). Entre as inúmeras (e justíssimas) homenagens póstumas que lhes foram tributadas, foi inaugurada uma placa, em 4 de novembro de 1912, no também já centenário Liverpool Philarmonic Hall, perpetuando, em bronze, seu inusitado ato. Além dos seus nomes, ela traz os seguintes dizeres: “Aos membros da banda a bordo do Titanic, que corajosamente continuaram tocando para aliviar a angústia dos seus companheiros de viagem até o fim em 14 de abril de 1912. Coragem e compaixão ajudaram a tornar um herói completo”.

O episódio, embora narrado e repetido por centenas, quiçá milhares de fontes, requer narrativa mais linear e objetiva, que o torne compreensível a você, leitor deste sé4culo XXI. O que ocorreu, em resumo, foi o seguinte:

Quando a tripulação do Titanic tomou ciência da colisão do transatlântico com o fatídico iceberg – e quando ainda havia esperanças de salvar a embarcação – Wallace Hartley e seus sete companheiros foram instruídos a continuarem tocando, como se nada de mais grave houvesse ocorrido, no salão de festas da primeira classe. O objetivo era o de acalmar os passageiros inquietos e evitar que o pânico se estabelecesse a bordo. E eles atenderam ao apelo. Não interromperam as seleções musicais com os “hits” da época por um só instante.

Todavia, a situação se agravou. Não tardou para que o capitão Edward Smith concluísse que o gigantesco navio estava irremediavelmente condenado. Foi quando ordenou que todos fossem para o convés, à procura dos insuficientes botes salva-vidas, para deixarem o Titanic. Claro (e é compreensível) o pânico se instalou a bordo. Como controlá-lo? Distraindo, da melhor forma possível, os apavorados (suspeito que àquela altura todos estivessem, posto que em graus diferentes, de acordo com a estrutura psicológica de cada um). Com esse objetivo, Smith renovou seu pedido aos músicos, mas, desta vez, para que tocassem no convés, junto aos botes salva vidas. E, mais uma vez, estes atenderam prontamente ao apelo, sem qualquer relutância. Quantos fariam isso? Presumo que poucos. Desconfio, aliás, que ninguém.

Mas a situação ficou ainda mais dramática. Não tardou para que Hartley e seus sete companheiros entendessem que não havia barcos para todos. E, pior, que não haveria lugar para nenhum deles. Compreenderam, claro, que estavam condenados, que iriam morrer, sem a mais remota chance ou mesmo a mais pálida esperança de salvação. Eu, estivesse no lugar deles, entraria, imediatamente.  em pânico total. Não me passaria, nem remotamente, pela cabeça, continuar tocando, face à certeza da morte iminente.  Mas... os heróicos músicos não agiram assim. Não pararam de tocar.   

De acordo com uma testemunha, resgatada a bordo do navio Collapsible A, os membros da banda tocaram e tocaram e tocaram até o último minuto, no alto da escada do salão principal. Não pararam nem mesmo quando três deles foram engolidos pelo mar. A mesma pessoa assegurou – o que foi confirmado por dezenas de outros sobreviventes – que, ao final, Hartley teria subido no ponto mais alto possível, com o navio já partido em duas partes e com a que ele estava na vertical, e gritado para seus companheiros: “Senhores, eu me despeço”. Coisa de herói, gesto sublime, digno de pessoa de muita fé e de amor pelo que faz e pelo próximo,   não é fato?

Há alguma controvérsia sobre qual música teria sido a última tocada.  Todavia, a imensa maioria dos sobreviventes assegurou que se tratou do hino evangélico “Mais perto quero estar”. Este tão conhecido preito de louvor a Deus, cuja letra foi composta por Sara Flower Adams (1805-1848), com melodia do compositor sacro Lowel Mason, é cantado em todos os cultos nas várias igrejas cristãs mundo afora. É o hino número 427 do Hinário Adventista, por exemplo. Quem já o ouviu (e cantou), notadamente nas situações mais aflitivas da vida, sabe o efeito consolador e bom que produz. Passei por essa experiência e posso atestar sua eficácia.

Membros antigos da banda, que não estiveram, portanto, a bordo do Titanic, disseram que Hartley teria dito que, se algum dia estivesse em um naufrágio, tocaria ou “Nearer, My God, to Thee” (música tocada pelo seu personagem no filme Titanic de 1997) ou “God, Our Help in Ages Past”. Já o operador de rádio e telegrafista Harold Sydney Bride, outro sobrevivente da tragédia, principal fonte para o livro “A night to Remember” (que viraria filme em 1958), teria testemunhado de se lembrar da música “Autumn” durante o ocorrido. Fico, porém, com a versão da maioria. A última música tocada pela banda foi, mesmo, “Mais perto quero estar”, tendo Wallace Hartley ao violino, instrumento do qual era virtuose.

Por volta das duas horas da madrugada, os que estavam nos botes salva vidas constataram que o Titanic já havia afundado de sete a dez metros e que a popa estava fora da água. A uma distância de cerca de 1.500 metros, suficiente para que o redemoinho do naufrágio não pusesse em risco sua segurança, os sobreviventes viram, estarrecidos, quando o transatlântico se partiu em duas metades. A parte da frente submergiu com incrível velocidade. Na restante, eles ainda ouviram o som da banda tocando o hino “Mais perto quero estar”. Nem mesmo a explosão que ocorreu  na metade que ainda flutuava abafou a música. Aos poucos, porém, ela foi enfraquecendo, à medida que a parte traseira também afundava nas águas geladas do Atlântico Norte. E a música morreu com seus apaixonados cultores.

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