Genialidade precoce
Pedro
J. Bondaczuk
O compositor e pianista
Franz Liszt (em húngaro, Liszt Ferenc), nascido na cidadezinha de
Raiding/Doborjan, em 22 de outubro de 1811, ficou famoso pela genialidade de
sua obra. É dos poucos artistas, todavia, cuja fama cresce – no meio da música
erudita – à medida que o tempo passa, em vez de diminuir ou de cessar, como
normalmente acontece. Pudera! Sou admirador incondicional de suas composições.
Presumo que eu seria um sujeito de péssimo gosto se, conhecendo sua obra
(notadamente a pianística), que revolucionou o estilo musical de sua época, não
a apreciasse. A menos que não entendesse nada de música e não soubesse
distinguir nem mesmo um dó de um si.
Não sou músico
(infelizmente), embora seja apreciador do que há de melhor nessa arte. Posto
que tenha meros rudimentos de teoria, pelo menos sei ler (e entender) uma
partitura, o que me credencia a pelo menos palpitar a propósito. E quem tem
essa habilidade, não tem como não apreciar o que Liszt compôs. No caso dele,
pode-se dizer, sem exageros ou contestações, que foi um gênio na sua
especialidade, o que qualquer cético pode constatar ouvindo suas composições. E
digo mais, passados 126 anos da sua morte (ocorrida em 31 de julho de 1886),
ele ainda é considerado um dos maiores pianistas de todos os tempos. Ou seja,
era virtuose no instrumento para o qual compôs.
Sua contribuição para o
desenvolvimento da técnica de piano não tem similar na história. Se acharem que
exagero, perguntem aos principais pianistas da atualidade. Certamente seu
entusiasmo por Liszt será maior (e infinitamente mais abalizado) do que o meu,
que já não é pequeno.
A vida (e, por
conseqüência, a obra) desse gigante da criatividade musical teve três
principais pilares, três vertentes, todas oriundas da infância: a música, a
religião e o interesse pela cultura dos ciganos que sempre o fascinou. Dizem (e
desconfio que com forte dose de razão) que as marcas mais fortes deixadas por
nossa meninice são as que balizam toda nossa vida e determinam nossa
personalidade. Afinal, por mais experiências que venhamos a ter, o menino que
um dia fomos permanece vivo para sempre em algum recanto de nós. Isso foi verdadeiro
pelo menos para o garoto Franz.
No lar, o que jamais
faltou, foi música. O pai, Adam Liszt, embora vivesse em condições materiais
modestas, era um nobre e orgulhoso de sua origem. Tocava alguns instrumentos.
Sua preferência era o violino, mas foi na guitarra que chegou a fazer relativa
fama, participando de programas ao lado de exímios e consagrados músicos
profissionais. Na casa do menino Franz, portanto, sons, dos mais variados –
desde os mais elaborados, criados pelos mais célebres compositores da época aos
engendrados pelos ciganos em suas canções populares, pérolas do folclore
húngaro – bailavam, o tempo todo, no ar.
Em um ambiente, como
aquele, qualquer criança, dotada de um mínimo de talento para a música,
certamente, ao crescer, seguiria a carreira musical. Se com sucesso ou não, são
outros quinhentos. Dependeria de uma série de fatores, ou seja, das tais
circunstâncias, como, por exemplo, de oportunidades para se instruir e para
desenvolver suas aptidões. Mas que teria interesse por essa arte, disso não
tenho dúvidas. E foi o que aconteceu com o pequeno Franz.
Adam, todavia, como pai
zeloso, queria que seu filho tivesse infância normal, como qualquer criança.
Opunha-se à precocidade, por entender que isso poderia comprometer a
personalidade do filho. Quando Franz começou a andar, o pai fazia de tudo para
que o interesse do garoto fosse por brinquedos e não pela música. Achava que,
se o menino tivesse vocação para ela, esta deveria ser identificada e
incentivada em seu devido tempo. Impedia que o filho sequer chegasse perto do
piano da casa. Todo esse esforço, no entanto, foi em vão.
Há coisas que a razão e
a lógica não conseguem explicar. Uma delas foi o acontecimento que se deu na
casa dos Liszts, quando o pequeno Franz tinha apenas seis anos de idade. Numa
determinada noite, durante um dos costumeiros saraus da família – que então era
o tipo de lazer mais comum das pessoas de classe média – o garotinho teimoso
(santa teimosia!) sentou-se ao piano e executou, sem cometer um único erro, com
sensibilidade e beleza, o dificílimo “Concerto em Dó Menor”, do compositor
Ferdinand Ries. Quem estuda música sabe que essa peça requer, acima de tudo,
completa concentração e muita agilidade mental.
A performance do
garotinho assombrou a todos, principalmente ao pai. Frise-se que, até então,
Franz nunca tinha sequer brincado com o piano (se o fizera escondido, Adam
jamais soubera). Ademais, o garoto (claro) não sabia ler a partitura. Ainda
assim, executou a complexa peça de memória, inteirinha, sem a menor falha. Como
explicar isso? Há alguma explicação? Qual?
É muito difícil
descrever, ou até especular, sobre a emoção que o pai sentiu. Foi um misto de
medo, orgulho, irritação pela desobediência do menino e, naturalmente,
assombro. Profundo assombro! Todavia, naquela noite, Adam percebeu que não
poderia evitar o inevitável. Raciocinou: “Se Franz quer ser músico, que o seja.
Mas terá que ser o melhor”. E o garoto, quando cresceu, de fato foi o “número
um” na sua especialidade. Tornou-se, reitero, um dos mais completos e melhores
pianistas de todos os tempos, além de compositor não somente criativo, mas
revolucionário.
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