Wednesday, March 20, 2013


Insólito desenvolvimento de um gênio

Pedro J. Bondaczuk

A precocidade de determinadas crianças não raro é forçada pelos pais e não tem nada de natural. Basta, muitas vezes, que um garotinho ou garotinha de seis ou sete anos cantem razoavelmente afinado (a) alguma canção, ou nem mesmo isso, para que, de imediato, sua família já veja nele ou nela um cantor ou uma cantora em potencial. Enchem sua cabeça de fantasias e findam por mutilar sua personalidade, distorcendo-a irremediavelmente e produzindo um futuro ou neurótico ou uma futura neurótica. Em alguns casos, arruínam sua infância e tais “futuros artistas”, com o tempo e as circunstâncias, frustram todas expectativas, suas e dos pais, para decepção e desgosto gerais.

Não foi, todavia, o que aconteceu com Franz Liszt. E isso graças a seu esclarecido pai, Adam, que fez de tudo para que o menino fosse como os demais da sua idade, sem impor-lhe expectativas e nem responsabilidades incompatíveis com a idade. Pelo contrário, fez de tudo para afastá-lo do piano e não por temor de que o garoto quebrasse, ou mesmo desafinasse o instrumento. Agiu assim para evitar que, por uma tendência de imitação, o menino achasse que já era músico, a despeito dos seus seis anos de idade.

Quando percebeu, porém, que o filho tinha, mesmo, tendência para a música, provavelmente a contragosto, cedeu às evidências. Contratou, para dar as primeiras noções dessa arte que exige tanta disciplina e técnica, o mais renomado professor que vivia nas redondezas da sua cidade. Dizem os biógrafos – e não tenho porque duvidar dessa afirmação – que a partir de então, o pequenino Franz “se desligou do mundo”. Passava seis horas por dia estudando e fazendo exercícios, num estado de excitação até perigoso.

Ao contrário de muitas crianças de hoje, obrigadas pelos pais a maçantes e estafantes aulas de música, ninguém precisava lembrar a Franz que ele tinha que estudar. A iniciativa partia sempre dele. Foram inúmeras as ocasiões em que os pais tiveram que usar de muita energia para tirá-lo da frente do piano e obrigá-lo a brincar com outras crianças. Sua paixão pela música, em determinada época, atingiu o paroxismo. O garoto foi acometido de uma altíssima febre, cuja causa médico algum conseguia determinar.

Após muitas consultas e reiterados exames, a conclusão a que se chegou, sobre a etiologia daquela disfunção orgânica, foi a de que ela não era causada por nenhum vírus ou bactéria ou por desarranjo de qualquer órgão. Era de fundo psicológico. Era amor extremado pela arte, uma espécie de obsessão. O organismo do menino definhou a tal ponto que ele esteve à beira da morte.

A partir de então, o pai assumiu de vez um papel que exerceria com mão de ferro enquanto viveu: o de disciplinador. Nunca mais permitiu ao filho que fizesse as coisas à sua maneira. Estabeleceu normas rígidas, com horários inflexíveis e rigorosos para tudo: para comer, dormir, brincar e... estudar. Se Franz queria música, muito bem, a teria. Contudo, teria que ser com moderação e disciplina. E assim foi.

Quando Franz Liszt completou nove anos de idade, já era celebridade na Hungria e na Áustria. Por exemplo, deu um concerto, que se tornou inesquecível, na casa do Barão Von Braun, em Oldenburgo, para o qual foi o convidado de honra, apresentando-se ao lado de “monstros sagrados” da época, de músicos consagrados e de reputação solidamente firmada. Eram todos adultos. Todos, menos o melhor deles: o menino Franz.

Ao cabo do evento, o garoto prodígio foi o alvo de todas as ovações dos presentes. Seus biógrafos garantem que todos aqueles louvores não tiveram nada a ver com a idade, mas com a perícia e a paixão com que o músico mirim executou um concerto de Ferdinand Ries, improvisando em torno de um tema bastante conhecido, façanha que, até então, ninguém ousara fazer, dada a complexidade da composição. Franz Liszt literalmente “brincou” com o instrumento, valorizando uma peça musical que já era, por si só, magnífica.

Dias depois, deu outro recital, com idêntico sucesso, na mansão do Conde Esterhazi, em Presburgo, cidadezinha em que a elite européia costumava veranear. O entusiasmo pela performance de Franz Liszt nessa apresentação acabou sendo decisivo principalmente para a sua carreira musical. Representantes das famílias mais ricas e influentes da Hungria, como os Szãpary, os Amadeu, os Apponyie e os Erlõdy, entre outros, presentes ao recital, concluíram que tamanho talento merecia tratamento melhor do que o pai estava lhe dando. Cotizaram-se e deram-lhe uma bolsa de estudos com os professores de maior reputação e mais caros da Europa, com duração de seis anos.

Franz Liszt foi enviado a Viena, para estudar com Carl Czerny. Mas o mestre saiu do sério ao ouvir o pequeno gênio. Intuiu que, burilando aquele diamante bruto, ganharia muito mais do que dinheiro: ficaria para sempre ligado, através dos séculos, a uma “celebridade” da música. Tinha tanta certeza disso, que decidiu tomar Liszt como aluno gratuitamente,  justo ele que tinha a fama de ser um dos professores mais caros da Europa.

Ao mesmo tempo, providenciou a contratação de outro mestre, este de harmonia e composição, considerado insuperável. E sabem que era? Era, nada mais, nada menos do que o último instrutor que Ludwig van Beethoven teve, ou seja, Antonio Salieri (detratado, injustamente, no filme “Amadeus”). Foi ele que conduziu o jovem talento, o menino prodígio, pelos caminhos da música religiosa, em que iria se destacar tanto. Em suma, aos doze anos de idade, quando a maioria dos pré-adolescentes ainda tem a cabeça cheia de sonhos e de fantasias, Franz Liszt já era músico formado, completo e genial, apto a encarar as maiores e mais requintadas platéias de música erudita da Europa e do mundo.

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