Visões distintas sobre
a mesma epidemia: a de 1665
Pedro
J. Bondaczuk
A epidemia de peste
bubônica que devastou Londres, nos anos de 1665 e meados de 1666, foi descrita
em dois relatos completamente diferentes (embora possa ter havido outros, mas
que, se houve, ninguém fala deles hoje, pelo simples fato de desconhecê-los): um
cercado de máxima credibilidade e outro parecendo se tratar de enorme fantasia
(para não dizer, grande mentira), pelo menos no que se refere às informações
essenciais. Os relatores a que me refiro são Samuel Pepys e Daniel Defoe (cujo
nome de batismo era somente Daniel Foe). O primeiro, era funcionário público de
segundo escalão, lotado no Ministério da Marinha. Já o segundo era, além de
escritor de renome – que deixou marca indelével na história da Literatura
inglesa – sobretudo combativo jornalista. Tão combativo que foi preso em pelo
menos três ocasiões por fazer ferozes críticas ao governo da rainha Ana,
especialmente pelo fato dela ser anglicana (ele também era protestante, mas de
outra denominação).
Cansado de “remar
contra a maré”, Daniel Defoe decidiu, aos 59 anos de idade, abandonar de vez o
jornalismo. Passou a dedicar-se única e exclusivamente à Literatura, mais
especificamente, à ficção, que lhe dava além de prestígio (e muito), razoável
dinheiro (algum), com a crescente venda de seus livros – vendidos, ainda, a
“rodo”, mais de duzentos anos após a sua morte – e sem os aborrecimentos de ter de explicar as
críticas e provar as denúncias que fazia aos poderosos. Sem ler nenhum dos dois
livros – respectivamente “Diários” e “Um diário do ano da peste” – com base,
apenas, nos dois currículos, a qual
deles você daria crédito, não pela verossimilhança, mas por ser a verdade
“verdadeira”: a Samuel Pepys ou a Daniel Defoe? Dez entre dez pessoas às quais
fiz essa pergunta, ou seja, a totalidade, escolheram o aparentemente óbvio (sem
atentarem que muitas vezes as aparências enganam): o jornalista, evidentemente.
E isso não sem um risinho maldoso de canto de boca para zombar da minha suposta
ingenuidade ao fazer esse tipo de pergunta.
Após a leitura dos dois
relatos, será que a opinião continuaria sendo consensual, a favor de Defoe?
Bem, depende. Os que raciocinam com lógica, que analisam cada detalhe e não se
deixam levar apenas pelo estilo de redação, talvez mudassem de postura. Mas
apenas “talvez”. Afinal o jornalista era sumamente convincente, principalmente
como escritor, caso contrário não teria o prestígio que ainda hoje, mais de
dois séculos após a morte, goza. Destaque-se que até Gabriel Garcia Marquez,
que antes de tudo também foi jornalista e que era um sujeito “ligado” e sagaz,
encantou-se com o tal “Um diário do ano da peste”, mas só enquanto acreditou
que se tratava de magnífica reportagem. Quando ficou sabendo que era impossível
que se tratasse de matéria puramente jornalística, pois Daniel Defoe tinha
somente cinco anos de idade quando da ocorrência da epidemia... bem, mudou de
opinião. Não deixou de admirar o relato, do ponto de vista puramente literário
que, aliás, é um primor. Mas... passou a olhar o livro com outros olhos. E, em
termos históricos e documentais, optou pelo relato nu e cru, não raro eivado de
palavrões e de descrições e confissões obscenas e até escabrosas, de Samuel
Pepys.
Esse não tinha motivos
para fantasiar coisa alguma. Os diários que escreveu, como ressaltei em texto
anterior, não se destinavam à publicação. Muito pelo contrário. Pepys,
certamente, vivia aterrorizado só de pensar que aqueles seus registros viessem
a cair em mãos de qualquer pessoa, não importa qual fosse, se amiga ou inimiga.
Muitos já me perguntaram: se essas confidências eram tão comprometedoras, por
que o tal funcionário público não as destruiu, colocando fogo, por exemplo,
nelas? Sabe-se lá! Provavelmente por distração. Talvez por achar que quem
encontrasse aqueles diários, impossíveis de serem lidos, já que estavam
redigidos de forma criptografada, certamente se desfaria deles, como coisa
imprestável. Alguém, contudo, não se desfez. E esse alguém foi um pastor, um
ministro protestante, o reverendo John Smith.
Algo bastante
improvável aconteceu nesse caso. Os diários de Pepys foram parar nas mãos desse
clérigo não logo após sua morte, ocorrida em 1703, como seria de se esperar,
mas (pasmem) 122 anos após, em 1825. Como eles resistiram tanto tempo, passando
por inúmeras mãos, que não se desfizeram deles, é que é o grande mistério. O
que levou Smith a se interessar por aquele calhamaço de mais de três mil
páginas, todas criptografadas, é outra coisa incompreensível. Em vez de jogar
fora aquela papelama aparentemente inútil, recorreu a especialistas em taquigrafia,
trabalho que consumiu três longos anos da equipe. Assim que a “tradução” ficou
pronta, mesmo que horrorizado com determinadas passagens, que suprimiu da
versão final – mas fascinado por outras, dignas de um escritor de mão cheia, o
que Pepys nem mesmo era – resolveu fazer uma edição, cortando tudo o que
entendia ser censurável e imoral e publicou em forma de livro.
Moral da história: os
“Diários” servem, até hoje, como a mais preciosa e confiável fonte de
informações não somente sobre a epidemia de peste bubônica de 1665, mas,
principalmente, sobre como eram, o que faziam, o que pensavam e como os
ingleses da segunda metade do século XVII reagiam aos acontecimentos. E o
relato de Defoe (que comentarei oportunamente)? Bem, este segue gerando polêmicas
(embora vendendo bastante), com defensores (pela sua riqueza literária) e
opositores, que entendem que o ilustre autor de “Robinson Crusoe” deveria, asté
por questões éticas, de honestidade, ter alertado as pessoas que o seu livro
era uma obra de ficção. E você, atento leitor, o que acha disso tudo?
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