Saturday, May 14, 2016

Epidemia de Milão enseja romance comovedor


Pedro J. Bondaczuk

O território da atual Itália foi devastado por epidemias (supostamente, de peste negra) por milênios, antes, durante e após o surgimento, apogeu e queda do Império Romano. Quantos? Quem o sabe? É impossível saber isso e, principalmente, quantas pessoas morreram em conseqüência desse flagelo. Não dá, nem mesmo, para estimar, mesmo que com pequeníssima margem de acerto. Uma coisa é certa: as cifras ascenderam a “muitos milhões” (quantos? Jamais se saberá!) de mortos. Meu objetivo, porém, não é o de detalhar, fundamentado em documentos históricos, as várias epidemias que atingiram não só essa região específica da Europa, mas várias e várias outras partes do Planeta. Suponho que nenhum lugar do mundo escapou desse mal. Pelo menos, é o que a simples lógica indica. Fazê-lo seria tarefa comparável aos mitológicos “doze trabalhos de Hércules” e não me sinto preparado para tamanho desafio.

Minha pretensão, que nem é tão modesta assim, é a de trazer à baila a forma como “alguns” escritores relataram essas ocorrências. Dia desses, conversando com um médico amigo, este fez uma observação superpertinente a propósito. Observou que nem todas as epidemias, tidas e havidas como sendo de peste bubônica, foram, na realidade, dessa doença. Muitas foram de cólera, de varíola, de febre amarela, de tifo e sabe-se lá mais do que. Faz sentido, pois se não se conhecia nem mesmo o que causava esses mortíferos males, atribuídos a meros “castigos divinos”, as pessoas não poderiam, é claro, distinguir a natureza da moléstia. Alguns leitores observaram que concentrei meus comentários, até aqui, nas epidemias que atingiram Florença. Pudera! Essa cidade (que já foi, inclusive, capital da atual Itália, antes que Roma fosse conquistada em 20 de setembro de 1870 e tornada a sede do governo do país) produziu escritores notáveis, que relataram com maestria, com magistral perícia os estragos causados pela peste bubônica (se é que foi esta a doença que tantas vidas ceifou naquela cidade, berço da Renascença).

Contudo, trago à baila outra epidemia, esta, porém, ocorrida entre 1621 e 1639, e na região italiana da Lombardia, então sob o governo espanhol. Quem fez seu relato foi o escritor Alessandro Francesco Tommaso Manzoni. Observe-se que ele não testemunhou, (como seus colegas florentinos do século XIV testemunharam o que ocorreu em sua cidade), essa ocorrência. Nem poderia. Nasceu quase 200 anos após essa epidemia (em 7 de março de 1785). Certamente, deve ter feito muita pesquisa para apurar os dados que apresentou em seu romance (clássico da moderna literatura italiana) “I promessi sposi” (traduzido para o português com o título “Os noivos”). Esse livro, que recomendo por seu altíssimo valor literário, pode ser encontrado em qualquer boa livraria do Brasil.

A epidemia de que Manzoni trata foram, na verdade, vários focos isolados da mortal doença que se convencionou reunir sob a denominação genérica de “A Grande Peste de Milão” (cidade natal do escritor). Essa selvagem ocorrência, que devastou todo o Norte da Itália, teria causado um número de mortos estimado em 300 mil pessoas. O uso do verbo no condicional se justifica, já que, se estimativas hoje em dia raramente são confiáveis, imaginem naquele tempo! Essas cifras tanto poderiam ser muitíssimo maiores, como bem menores. Mas... aceitemos esse número, já que o romance de Alessandro Manzoni, obviamente, é obra de ficção e não de História. Portanto, não se exige dele exatidão, pelo menos nesse aspecto. Há muito a se dizer, tanto sobre esse escritor, quanto sobre o seu livro, o que não pretendo fazer num único comentário, sob pena de estragar um bom assunto e limitar-me à superficialidade. Creio que esta é excelente oportunidade para se conhecer um pouco mais a respeito de ambos.

Alessandro Manzoni, que também foi poeta e político (foi senador do então Reino da Itália), é, consensualmente, entre os que conhecem sua obra literária, um dos mais importantes nomes da Literatura contemporânea de seu país. Apesar de ter vivido há tanto tempo (morreu em 22 de maio de 1873), seu romance mantém rigorosa e notável atualidade. Pessoalmente, considero-o um dos melhores (se não o melhor) dos ficcionistas italianos de todos os tempos, ao lado de figuras como Umberto Eco, Alberto Morávia, Dino Segre (Pitigrilli) e um restrito punhado de alguns outros mais. O enredo de “Os noivos” se passa em uma aldeiazinha da região, às margens do Lago Como.

A história de Manzoni, que se dá quando da ocorrência da Grande Peste de Milão, é, em resumo, a seguinte: No dia previsto para seu casamento, Renzo e Lúcia, dois honrados jovens da região, descobrem que o cruel senhor do lugar, apaixonado pela noiva, pressionou o padre para impedir o matrimônio. Forçado a se exilar, o desesperado casal é separado e, cada um dos parceiros passa a viver uma quantidade enorme de aventuras até o dia em que ambos se reencontram em um lazareto de Milão, no auge da epidemia de peste. Além do seu valor ficcional, o livro apresenta detalhada documentação histórica do período tratado, com minúcias que levam o leitor a achar que o autor testemunhou os acontecimentos. São casos específicos a propagação da doença e a descrição do ambiente geral da cidade, particularmente das cenas de psicose coletiva que lá se verificou. Destaque-se o relato feito por Manzoni do lazareto que é, ao mesmo tempo, chocante pelo realismo das imagens e comovente, pelo seu aspecto profundamente humano. Voltarei ao tema.


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