Epidemia de Milão
enseja romance comovedor
Pedro
J. Bondaczuk
O território da atual
Itália foi devastado por epidemias (supostamente, de peste negra) por milênios,
antes, durante e após o surgimento, apogeu e queda do Império Romano. Quantos?
Quem o sabe? É impossível saber isso e, principalmente, quantas pessoas morreram
em conseqüência desse flagelo. Não dá, nem mesmo, para estimar, mesmo que com
pequeníssima margem de acerto. Uma coisa é certa: as cifras ascenderam a
“muitos milhões” (quantos? Jamais se saberá!) de mortos. Meu objetivo, porém,
não é o de detalhar, fundamentado em documentos históricos, as várias epidemias
que atingiram não só essa região específica da Europa, mas várias e várias
outras partes do Planeta. Suponho que nenhum lugar do mundo escapou desse mal.
Pelo menos, é o que a simples lógica indica. Fazê-lo seria tarefa comparável
aos mitológicos “doze trabalhos de Hércules” e não me sinto preparado para
tamanho desafio.
Minha pretensão, que
nem é tão modesta assim, é a de trazer à baila a forma como “alguns” escritores
relataram essas ocorrências. Dia desses, conversando com um médico amigo, este
fez uma observação superpertinente a propósito. Observou que nem todas as
epidemias, tidas e havidas como sendo de peste bubônica, foram, na realidade,
dessa doença. Muitas foram de cólera, de varíola, de febre amarela, de tifo e
sabe-se lá mais do que. Faz sentido, pois se não se conhecia nem mesmo o que
causava esses mortíferos males, atribuídos a meros “castigos divinos”, as
pessoas não poderiam, é claro, distinguir a natureza da moléstia. Alguns leitores
observaram que concentrei meus comentários, até aqui, nas epidemias que
atingiram Florença. Pudera! Essa cidade (que já foi, inclusive, capital da
atual Itália, antes que Roma fosse conquistada em 20 de setembro de 1870 e
tornada a sede do governo do país) produziu escritores notáveis, que relataram
com maestria, com magistral perícia os estragos causados pela peste bubônica
(se é que foi esta a doença que tantas vidas ceifou naquela cidade, berço da
Renascença).
Contudo, trago à baila
outra epidemia, esta, porém, ocorrida entre 1621 e 1639, e na região italiana
da Lombardia, então sob o governo espanhol. Quem fez seu relato foi o escritor
Alessandro Francesco Tommaso Manzoni. Observe-se que ele não testemunhou, (como
seus colegas florentinos do século XIV testemunharam o que ocorreu em sua
cidade), essa ocorrência. Nem poderia. Nasceu quase 200 anos após essa epidemia
(em 7 de março de 1785). Certamente, deve ter feito muita pesquisa para apurar
os dados que apresentou em seu romance (clássico da moderna literatura
italiana) “I promessi sposi” (traduzido para o português com o título “Os
noivos”). Esse livro, que recomendo por seu altíssimo valor literário, pode ser
encontrado em qualquer boa livraria do Brasil.
A epidemia de que
Manzoni trata foram, na verdade, vários focos isolados da mortal doença que se
convencionou reunir sob a denominação genérica de “A Grande Peste de Milão”
(cidade natal do escritor). Essa selvagem ocorrência, que devastou todo o Norte
da Itália, teria causado um número de mortos estimado em 300 mil pessoas. O uso
do verbo no condicional se justifica, já que, se estimativas hoje em dia
raramente são confiáveis, imaginem naquele tempo! Essas cifras tanto poderiam
ser muitíssimo maiores, como bem menores. Mas... aceitemos esse número, já que
o romance de Alessandro Manzoni, obviamente, é obra de ficção e não de
História. Portanto, não se exige dele exatidão, pelo menos nesse aspecto. Há
muito a se dizer, tanto sobre esse escritor, quanto sobre o seu livro, o que
não pretendo fazer num único comentário, sob pena de estragar um bom assunto e
limitar-me à superficialidade. Creio que esta é excelente oportunidade para se
conhecer um pouco mais a respeito de ambos.
Alessandro Manzoni, que
também foi poeta e político (foi senador do então Reino da Itália), é,
consensualmente, entre os que conhecem sua obra literária, um dos mais
importantes nomes da Literatura contemporânea de seu país. Apesar de ter vivido
há tanto tempo (morreu em 22 de maio de 1873), seu romance mantém rigorosa e
notável atualidade. Pessoalmente, considero-o um dos melhores (se não o melhor)
dos ficcionistas italianos de todos os tempos, ao lado de figuras como Umberto
Eco, Alberto Morávia, Dino Segre (Pitigrilli) e um restrito punhado de alguns
outros mais. O enredo de “Os noivos” se passa em uma aldeiazinha da região, às
margens do Lago Como.
A história de Manzoni,
que se dá quando da ocorrência da Grande Peste de Milão, é, em resumo, a
seguinte: No dia previsto para seu casamento, Renzo e Lúcia, dois honrados
jovens da região, descobrem que o cruel senhor do lugar, apaixonado pela noiva,
pressionou o padre para impedir o matrimônio. Forçado a se exilar, o
desesperado casal é separado e, cada um dos parceiros passa a viver uma
quantidade enorme de aventuras até o dia em que ambos se reencontram em um
lazareto de Milão, no auge da epidemia de peste. Além do seu valor ficcional, o
livro apresenta detalhada documentação histórica do período tratado, com
minúcias que levam o leitor a achar que o autor testemunhou os acontecimentos.
São casos específicos a propagação da doença e a descrição do ambiente geral da
cidade, particularmente das cenas de psicose coletiva que lá se verificou.
Destaque-se o relato feito por Manzoni do lazareto que é, ao mesmo tempo,
chocante pelo realismo das imagens e comovente, pelo seu aspecto profundamente
humano. Voltarei ao tema.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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