Monday, May 23, 2016

Quando a solidariedade cede ao medo



Pedro J. Bondaczuk

A peste bubônica foi, ao longo do tempo, se não a maior, uma das maiores inimigas da espécie humana. Causou a morte, no correr dos milênios, seguramente, de muitíssimas mais pessoas do que todas as guerras já travadas na Terra, somadas, incluindo as duas mundiais do século passado. Grandes escritores, dos mais diversos países, estilos e idiomas registraram várias e várias e várias dessas epidemias e pandemias, cada qual de acordo, claro, com sua compreensão da doença e sua capacidade de observação, além do seu talento descritivo. Tive a oportunidade, há já algumas semanas, de trazer à baila, diariamente, os relatos de alguns deles, a maioria clássicos da Literatura mundial. É provável (quase certo) que eu tenha omitido iu venha a omitir, na sequência desses comentários, vários autores importantes, e por uma série de razões. Entre estas enfatizo: esquecimento da minha parte, ignorância sobre tais escritores, impossibilidade de acesso às suas obras e vai por aí afora.

Ao tratar do tema “epidemias na visão da Literatura”, não posso e nem devo omitir o francês François-René de Chateaubriand e em especial sua “Las memoires d’outre-tombe” (“Memórias de ultratumba”, na versão espanhola e “Memórias de alémtúmulo”, na edição brasileira). Não se trata de um único livro, mas de vasta coleção, de 42 volumes, que demandaram trinta longos anos de trabalho do autor, publicados pela primeira vez em 1848. Essa extensa coleção, de caráter autobiográfico (embora não se trate, especificamente, de uma autobiografia clássica) registra, praticamente, meio século da história da França e, exatamente, um de seus períodos mais turbulentos e dramáticos, incluindo a Revolução Francesa, a ascensão e queda de Napoleão Bonaparte e outros tantos acontecimentos políticos e transformações sociais.

Chateaubriand e sua obra (e não somente a citada) são tão importantes que merecem comentários mais extensos e detalhados que pretendo tecer oportunamente e em outro contexto. Basta citar que este nobre (era visconde), poeta, romancista, ensaísta, diplomata e político, exerceu profunda influência na literatura romântica dos séculos CVIII e XIX, tanto na França, quanto na Europa (incluindo Portugal) e que se estendeu ao Brasil. Entre os que confessaram, com orgulho, serem seus “discípulos espirituais”, destaco apenas a título de exemplo, Víctor Hugo, tido e havido como um dos melhores escritores de todos os tempos. Quando criança, ele escreveu em um caderno: “Serei Chateaubriand ou nada”. Entendo que chegou a se ombrear com seu ídolo.

E onde entra o autor de “Memórias de alémtúmulo” no contexto envolvendo a peste bubônica? Ele relata, em um dos seus 42 volumes, a epidemia da doença ocorrida em 1720 no movimentado e importante porto francês de Marselha. Seu relato teve por foco o comportamento dos moradores da cidade (povo e autoridades) diante do flagelo. Chateaubriand escreve, a cera altura: “(...) O barco fatal, havendo ostentado a licença para atracar, foi admitido no porto. Este momento foi suficiente para envenenar o ar. Uma tempestade aumentou o mal e a peste estendeu-se de forma incontrolável por toda Marselha (...)”. Observe-se que o escritor, como todas as pessoas de seu tempo, sem exceção, não relacionava a doença aos ratos, que certamente teriam vindo da Ásia no porão do navio, com as respectivas pulgas que os parasitavam.

Chateaubriand prossegue sua narrativa: “(...) As portas da cidade e as janelas das casas foram fechadas. Em meio do silêncio geral, ouvia-se, às vezes, o barulho de janelas se abrindo e da queda de cadáveres atirados por elas. As paredes estavam manchadas de sangue coagulado e cachorros sem dono esperavam a queda dos corpos, para devorá-los. Em um bairro, em que todos os habitantes haviam morrido, haviam fechado seus cadáveres dentro das casas, selando as portas, como que para impedir a saída da morte (...)”. Como se vê, trata-se de descrição de tamanho horror, de fazer inveja a Edgar Alan Poe, mestre e criador dos contos de terror. Só que, ao contrário do escritor norte-americano, Chateaubriand descreveu o que de fato ocorria em Marselha, naquele sombrio ano de 1720.

Mas tinha mais horror a ser descrito, o que o autor de “memórias de alémtúmulo” relatou, com realismo, crueza e verdade, como neste trecho: “(...) Das avenidas, de grandes túmulos familiares em que se transformaram as casas, chegava-se a esquinas em que os calçamentos estavam cobertos de doentes e de moribundos, estendidos em colchões e abandonados, sem qualquer ajuda. Carcaças humanas jaziam meio apodrecidas, trajando roupas velhas e esfarrapadas, sujas de lama. Outros corpos mantinham-se de pé, apoiados nos muros, na mesma posição em que haviam morrido (...)”. Arrepiante, não é verdade? Descrição nua e crua da miséria humana e da falta de solidariedade, quando confrontada com o medo e com o instinto de sobrevivência. Reitere-se que tudo isso, de fato, aconteceu e que Chateaubriand relatou com a precisão de um repórter, embora não fosse, sequer, jornalista.


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