Sunday, May 15, 2016

Um romance exemplar em três versões


Pedro J. Bondaczuk

O romance “Os noivos”, de Alessandro Manzoni, em que o autor detalha, entre outras coisas, o que se convencionou chamar de “A Grande Peste de Milão”, que assolou a região da Lombardia, Norte da atual Itália, entre 1621 e 1639, embora pareça mera história de amor, aliás muito bem redigida, extrapola a mera ficção. Contém inúmeros elementos de realidade, de fatos e de figuras que realmente existiram na época, o que, no tempo em que escreveu essa obra-prima, era procedimento absolutamente inédito. Aliás, há muitas curiosidades em torno desse primoroso romance, que mereceu, inclusive, recentemente, entusiásticos elogios do papa Francisco. O Pontífice confidenciou a propósito: “Li três vezes o livro ‘Os Noivos’ e, agora, tenho-o na secretária para voltar a lê-lo”. Manzoni ministra, através da sua narrativa,  preciosos ensinamentos de como narrar uma história de amor, com sobriedade e segurança, sem descambar para a pieguice, de tal sorte que ela não perca, passe o tempo que passar, a atualidade.

A quem não conhece esse autor, fica a impressão, se não a convicção, de que se trata de um escritor contemporâneo, do nosso tempo, o que, óbvio, não é verdadeiro. Ele não se limita a contar uma história, com vários e vários personagens (tanto os criados por ele, quanto muitos reais, que de fato existiram), mas exerce sutil crítica social, ponderada,serena, equilibrada e justa, sem descambar para o panfletário. Uma das curiosidades desse livro é que ele teve três versões diferentes (duas das quais publicadas), cada qual com seu título próprio, ambas, é claro, de autoria de Manzoni. A primeira, foi a concluída em 1823, cuja redação iniciou em 1821. O escritor não ficou, todavia, satisfeito com o resultado. Reescreveu-a quase que por completo e publicou-a em 1827, com o título de “Fermo e Lucia” (nome dos dois principais personagens da história). Essa versão foi toda escrita no dialeto falado em Florença.

Passados 13 anos, não se sabe por que, Alessandro Manzoni resolveu reescrever, agora pela terceira vez, seu romance. E intitulou-o “I promessi sposi”, que ficou sendo o título definitivo. O livro lançado no Brasil como “Os noivos” é o desta versão final. Além do título, Manzoni alterou, ainda, entre outras modificações que fez, o nome do principal personagem masculino, que era originalmente Fermo e passou a ser Renzo. Outra particularidade dessa nova (e definitiva) edição é o fato dela ter sido escrita no que hoje é o idioma oficial da atual Itália. Foi uma das primeiras obras literárias escritas nessa língua. Ela ficou conhecida nesse país como “edizione quarantana” (em alusão ao ano de 1840). O importante é que o livro é, consensualmente, um clássico não apenas das letras italianas, mas da Literatura contemporânea mundial.

Manzoni trata da epidemia não somente como “balizadora” da época em que se desenrola o enredo, como era comum na época. A doença tem papel importante na narrativa (diria, até, essencial). Explico. Entre as inúmeras peripécias do casal apaixonado, separado aos pés do altar justo no momento em que iria se casar, está o que poderíamos chamar de “seqüestro” de Lúcia, por parte do fidalgo Dom Rodrigo (que de fato existiu). Essa figura sinistra, conhecida na localidade como “Innominato” (aquele que não se pode nomear), tinha motivo muito forte pára ser chamada assim. Havia, em várias partes da Europa daquele tempo, uma espécie de perverso costume em que as camponesas bonitas (e Lúcia o era), antes de se casarem, tinham que “entregar a virgindade” ao poderoso senhor local. E o tal senhor da localidade era Dom Rodrigo. A moça, todavia, com sua bondade e ingenuidade, conseguiu demover o pilantra de deflorá-la.


Enquanto isso, Renzo vive o drama de sair da sua terra e percorrer outros caminhos, que o levariam a questionar e rever seus valores, ameaçado que estava de perder até a identidade e suas raízes. Ele imbui-se do propósito de lutar pelos desvalidos ao testemunhar o sofrimento da população esquecida pela nobreza. Com isso, vive verdadeira revolução interna que transforma sua luta em algo bem mais intenso do que a simples procura pela amada. E onde entra a epidemia nessa questão? Quando tudo parecia perdido para o casalzinho apaixonado, vem a peste bubônica, que finda por “escrever certo por linhas tortas”. A doença simplesmente elimina o feroz inimigo, o Innominato, o fidalgo Dom Rodrigo, que morre vítima da doença, fazendo com que se tornasse finalmente possível a união tão desejada de Renzo e Lúcia, impedida pelo poderoso vilão.

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