Um romance exemplar em
três versões
Pedro
J. Bondaczuk
O romance “Os noivos”,
de Alessandro Manzoni, em que o autor detalha, entre outras coisas, o que se
convencionou chamar de “A Grande Peste de Milão”, que assolou a região da
Lombardia, Norte da atual Itália, entre 1621 e 1639, embora pareça mera
história de amor, aliás muito bem redigida, extrapola a mera ficção. Contém
inúmeros elementos de realidade, de fatos e de figuras que realmente existiram
na época, o que, no tempo em que escreveu essa obra-prima, era procedimento
absolutamente inédito. Aliás, há muitas curiosidades em torno desse primoroso
romance, que mereceu, inclusive, recentemente, entusiásticos elogios do papa
Francisco. O Pontífice confidenciou a propósito: “Li três vezes o livro ‘Os
Noivos’ e, agora, tenho-o na secretária para voltar a lê-lo”. Manzoni ministra,
através da sua narrativa, preciosos
ensinamentos de como narrar uma história de amor, com sobriedade e segurança,
sem descambar para a pieguice, de tal sorte que ela não perca, passe o tempo
que passar, a atualidade.
A quem não conhece esse
autor, fica a impressão, se não a convicção, de que se trata de um escritor
contemporâneo, do nosso tempo, o que, óbvio, não é verdadeiro. Ele não se
limita a contar uma história, com vários e vários personagens (tanto os criados
por ele, quanto muitos reais, que de fato existiram), mas exerce sutil crítica
social, ponderada,serena, equilibrada e justa, sem descambar para o
panfletário. Uma das curiosidades desse livro é que ele teve três versões
diferentes (duas das quais publicadas), cada qual com seu título próprio,
ambas, é claro, de autoria de Manzoni. A primeira, foi a concluída em 1823,
cuja redação iniciou em 1821. O escritor não ficou, todavia, satisfeito com o
resultado. Reescreveu-a quase que por completo e publicou-a em 1827, com o
título de “Fermo e Lucia” (nome dos dois principais personagens da história).
Essa versão foi toda escrita no dialeto falado em Florença.
Passados 13 anos, não
se sabe por que, Alessandro Manzoni resolveu reescrever, agora pela terceira
vez, seu romance. E intitulou-o “I promessi sposi”, que ficou sendo o título
definitivo. O livro lançado no Brasil como “Os noivos” é o desta versão final.
Além do título, Manzoni alterou, ainda, entre outras modificações que fez, o
nome do principal personagem masculino, que era originalmente Fermo e passou a
ser Renzo. Outra particularidade dessa nova (e definitiva) edição é o fato dela
ter sido escrita no que hoje é o idioma oficial da atual Itália. Foi uma das
primeiras obras literárias escritas nessa língua. Ela ficou conhecida nesse
país como “edizione quarantana” (em alusão ao ano de 1840). O importante é que
o livro é, consensualmente, um clássico não apenas das letras italianas, mas da
Literatura contemporânea mundial.
Manzoni trata da
epidemia não somente como “balizadora” da época em que se desenrola o enredo,
como era comum na época. A doença tem papel importante na narrativa (diria,
até, essencial). Explico. Entre as inúmeras peripécias do casal apaixonado,
separado aos pés do altar justo no momento em que iria se casar, está o que
poderíamos chamar de “seqüestro” de Lúcia, por parte do fidalgo Dom Rodrigo
(que de fato existiu). Essa figura sinistra, conhecida na localidade como
“Innominato” (aquele que não se pode nomear), tinha motivo muito forte pára ser
chamada assim. Havia, em várias partes da Europa daquele tempo, uma espécie de
perverso costume em que as camponesas bonitas (e Lúcia o era), antes de se
casarem, tinham que “entregar a virgindade” ao poderoso senhor local. E o tal
senhor da localidade era Dom Rodrigo. A moça, todavia, com sua bondade e
ingenuidade, conseguiu demover o pilantra de deflorá-la.
Enquanto isso, Renzo
vive o drama de sair da sua terra e percorrer outros caminhos, que o levariam a
questionar e rever seus valores, ameaçado que estava de perder até a identidade
e suas raízes. Ele imbui-se do propósito de lutar pelos desvalidos ao
testemunhar o sofrimento da população esquecida pela nobreza. Com isso, vive
verdadeira revolução interna que transforma sua luta em algo bem mais intenso
do que a simples procura pela amada. E onde entra a epidemia nessa questão?
Quando tudo parecia perdido para o casalzinho apaixonado, vem a peste bubônica,
que finda por “escrever certo por linhas tortas”. A doença simplesmente elimina
o feroz inimigo, o Innominato, o fidalgo Dom Rodrigo, que morre vítima da
doença, fazendo com que se tornasse finalmente possível a união tão desejada de
Renzo e Lúcia, impedida pelo poderoso vilão.
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