Peste descrita por um
gênio da ficção
Pedro
J. Bondaczuk
O livro “Diário do ano
da praga” (ou “Um diário do ano da peste”, como foi também traduzido), de
Daniel Defoe, é um primor, se considerarmos, apenas, seu aspecto literário. É
um romance desses que a gente lê de um único sopro e fica querendo ler mais, na
seqüencia, relendo-o ou lendo outro livro do mesmo autor. Os três principais
que escreveu, e que tenho em minha biblioteca, são desse jeito: primorosos. Não
é, portanto, sua qualidade ficcional que eu e muitas outras pessoas
contestamos. Para mim, Defoe foi um gênio da ficção. O que se reprova nele é o
fato dele não ter alertado, especificamente nesse caso, o leitor que “Diário do
ano da praga” se tratava de uma obra de ficção. Pelo contrário, ele escreveu o
livro como se fosse sua autobiografia, o que nem poderia ser. E não é. A praga
a que Defoe se refere é a epidemia de peste bubônica e o ano é 1665. Contudo, nessa
ocasião, o escritor tinha, somente, cinco anos de idade. Não testemunhou (e nem
poderia testemunhar) portanto os fatos que relata e que dá a entender que
presenciou pessoalmente.
Não custava nada o
escritor ter informado, no prefácio do livro, que a obra tinha caráter
ficcional, posto que baseada em fatos reais. Valorizaria muito mais seu
talento, sua criatividade, sua capacidade de imaginação. Não agiu assim. É,
deixo claro, a única restrição que faço ao “Diário do ano da praga”. Dizem que
até Gabriel Garcia Marquez, em princípio, chegou a achar que o livro era,
mesmo, uma reportagem. Não era! Esse fato, todavia, não anula e nem diminui a
importância da obra como documento histórico. Até porque, as informações que
prestou são, todas, rigorosamente exatas, como pode se depreender comparando o
que escreveu com textos de quem
realmente testemunhou a epidemia e registrou cada detalhe dela em seu diário.
Refiro-me, especificamente, a Samuel Pepys, sobre o qual já comentei.
Defoe descreve a peste
como se fosse um repórter que vivia, de rua em rua, à cata de histórias reais,
retratando o drama das famílias, às quais deu voz, como faria um bom jornalista
(que ele era), mesmo encarando o medo de vir a ser contaminado pela mortal
doença. Seu relato reveste-se de absoluta verossimilhança. Dizem que ele baseou
boa parte do seu livro nos diários de seu tio Henry, este sim testemunha ocular
da epidemia e da devastação de vidas que ela causou. Que magnífico ficcionista
que ele se mostrou!! Mas deveria, insisto, ter alertado o leitor que se tratava
de uma peça de ficção, o que valorizaria ainda mais seu magnífico romance, um
dos melhores que já tive a oportunidade de ler.Ninguém no seu tempo escrevia de
forma sequer remotamente parecida com a que escreveu.
Defoe recorre a
engenhosos estratagemas para dissimular a falta de informações exatas sobre os
casos (verdadeiros) que relata. Utiliza-se de rodeios realistas sobre como
reagiria, por exemplo, uma pessoa normal que houvesse perdido um ente querido,
vítima da peste, sem poder fazer coisa alguma para evitar. Reproduzirei,
abaixo, um trecho do seu livro, em que ele trata do caso de uma jovem moribunda
e, principalmente da reação desesperada, insana mesmo, da mãe da moça. É um
relato típico de quem testemunhou pessoalmente a ocorrência, que na verdade não
testemunhou. Apenas imaginou como teria sido. Defoe escreve: “(...) Enquanto
aqueciam a cama, a mãe despia a jovem que estava recostada. Examinando o corpo
da enferma à luz de vela, descobriu, de imediato, os sinais fatais no interior
dos músculos da filha. Incapaz de conter-se, retirou a vela e se pôs a gritar
de maneira tão tremenda que poderia encher de terror o coração mais firme. Não
foi um grito ou um uivo único: sua mente, havendo se enchido de medo, apagou
primeiro: desmaiou (...)”. Essa seria a reação de qualquer pessoa normal.
E Defoe continua seu
relato: “(...) Quando acordou do desmaio, a mulher correu por toda a casa,
subindo e descendo as escadas como uma louca, e o era de fato naquele momento.
Continuou gritando e uivando durante horas, perdendo, por completo, a razão ou,
pelo menos, o domínio de todos os sentidos. Nunca recuperou-os por completo,
como me disseram. Quanto à jovem, tratava-se, já, de uma pessoa morta, porque a
gangrena que produz as manchas havia se espalhado por todo o corpo e o
falecimento se consumou duas horas depois. E a mãe continuou gritando, sem
saber nada sobre sua filha, durante várias horas após a sua morte. Isso
aconteceu há tanto tempo, que não estou seguro de tudo, mas creio que a mãe
nunca se recuperou e que morreu duas ou três semanas depois (...)”.
Que realismo, que poder
narrativo, que capacidade de impressionar e comover o leitor! Essa, e outras
tantas narrativas, resultam num magnífico documento, com mais detalhes,
inclusive, que os relatos de Samuel Pepys, que testemunhou episódios como este,
mas que não teve tanto talento para descrevê-lo como o ficcionista Daniel
Defoe. Que diferença com os romancistas seus contemporâneos, que achavam que
fazer literatura, que escrever romances, era só contar histórias melosas,
piegas, água com açúcar, com narrativas completamente fora da realidade!!!
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