Friday, May 27, 2016

Quando catástrofes revelam quem as pessoas de fato são

Pedro J. Bondaczuk

O escritor dinamarquês Jens Peter Jacobsen faz impressionante relato de como, no seu entender, se comportam as pessoas de determinada comunidade se atingida por súbita catástrofe de causas desconhecidas, que faça, sucessivamente, quantidade imensa de vítimas, sem que ninguém tenha solução minimamente viável para deter suas conseqüências. Aborda, no romance “A peste em Bergamo”, uma hipotética epidemia dessa doença, incontrolável e selvagem, causando pânico entre os habitantes da localidade. E traz à baila três tipos principais de reações.

De um lado, apresenta os místicos, os crédulos, os verdadeiros fieis, que acreditam, sem titubear, que a mortal doença seja “castigo divino”, por causa dos pecados e da corrupção dos moradores da cidade, mas que crêem que o arrependimento seja o caminho sensato a seguir. Estes entendem que a reconciliação com Deus seja a única maneira de conter a evolução da peste bubônica, mediante rezas, jejuns, promessas, sacrifícios e até mesmo autoflagelação, entre outros rituais religiosos.

Jacobsen aponta um segundo grupo, que também acredita que a causa se trate de castigo, mas que não enxerga nenhuma saída, não vislumbra a mais remota possibilidade do perdão divino. Por isso, em vez de arrepender-se, rebela-se contra o que entende ser “vingança injusta” e despropositada da divindade. Seus integrantes, renunciando a fé, concluem serem inúteis todos os rituais indicados pelas autoridades eclesiásticas. E, em vez de se arrependerem, se voltam contra tudo o que lembre religião, por julgarem ser inútil. Sem vislumbrar nenhuma saída que o livre da fatalidade, esse grupo entrega-se à violência e a ações ditadas exclusivamente pelos mais primitivos instintos, incapazes de raciocinar com um mínimo de bom senso, tomado pelo pânico.

Finalmente, Jacobsen apresenta uma terceira facção, a absolutamente cética, que não acredita e jamais acreditou (antes mesmo do surgimento da epidemia) sequer na existência de Deus. Sem vislumbrar qualquer possibilidade de ser poupada da morte, busca satisfazer todas as fantasias, vícios e desejos, mesmo os mais secretos e condenáveis, enquanto pode, sem freios de quaisquer espécies e sem medir conseqüências. Essas pessoas sentem-se condenadas, sem chances de escapar e, portanto, entendem que não há pior punição do que a morte, e que esta, estão convictas, ser certa. Vai daí... O enredo imaginado por Jacobsen suscita, principalmente, reflexões sobre a fragilidade das convicções de determinadas pessoas e sobre como catástrofes tendem a revelar seu verdadeiro caráter. Tais indivíduos, observe-se, em condições normais, quase sempre aparentam ser sóbrios e equilibrados, dotados de sólidos princípios éticos e morais e de bom senso, mas, em face do perigo, mostram sua real natureza corrupta.

O escritor dinamarquês escreve, à certa altura: “(...) Um dia, quando já não se sabia o que fazer, do balcão da Prefeitura, em meio aos sons das trombetas e das buzinas, a Santa Virgem foi proclamada prefeita da cidade, agora e para sempre. Mas isso não serviu para nada. Não havia coisa alguma que pudesse servir naquelas circunstâncias. E quando as pessoas se deram conta e quando cresceu a crença de que o céu não queria ou não podia ajudá-las, elas abaixaram os braços que haviam erguido para saudar a Virgem, dizendo ‘deixemos chegar o que tem que chegar’. Pareceu que o pecado coletivo brotou de repente de um mal estar secreto e clandestino, até converter-se numa horrorosa, raivosa praga espiritual que, paralela ao contágio físico, matava a alma, enquanto a doença devastava o corpo, tão incríveis eram suas ações e enorme a sua depravação (...)”.

Como se vê, a fé dessa gente era somente formal. Diluía-se com a rapidez de um raio, com incrível facilidade, tão logo posta à prova. E Jacobsen prossegue em sua dramática descrição de como imaginava que seria na prática uma situação como a que propôs em sua novela: “(...) O ar encheu-se de blasfêmias e de impiedade, com os gemidos dos glutões e os uivos dos embriagados. A noite mais selvagem não escondia maior corrupção que a praticada em plena luz do dia (...)”.


Por que Jens Peter Jacobsen escolheu especificamente Bergamo, cidadezinha medieval italiana, a cerca de 50 minutos de carro de Milão, para cenário da sua história? Provavelmente porque ela foi palco, entre os anos de 1629 e 1630, de grave epidemia de peste bubônica e ele sabia disso. “Mas sua população reagiu da forma como o escritor dinamarquês descreveu?”, perguntaria o leitor. Alguns, provavelmente, sim. Talvez – e isso é suposição minha, sem nenhuma base em qualquer fonte – o que motivou o autor dinamarquês a optar por essa cidadezinha italiana pode ter sido o fato da população local haver escolhido, por unanimidade, a Virgem Maria como sua prefeita perpétua para protegê-la da peste. Como não a protegeu... Bergamo conta, até os dias de hoje, entre seus preciosos monumentos históricos, com uma suntuosa catedral em homenagem à sua padroeira: a Basílica de Santa Maria Maggiore, ponto turístico que atrai, anualmente, visitantes do mundo todo.

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