Quando catástrofes
revelam quem as pessoas de fato são
Pedro
J. Bondaczuk
O escritor dinamarquês
Jens Peter Jacobsen faz impressionante relato de como, no seu entender, se
comportam as pessoas de determinada comunidade se atingida por súbita
catástrofe de causas desconhecidas, que faça, sucessivamente, quantidade imensa
de vítimas, sem que ninguém tenha solução minimamente viável para deter suas
conseqüências. Aborda, no romance “A peste em Bergamo”, uma hipotética epidemia
dessa doença, incontrolável e selvagem, causando pânico entre os habitantes da
localidade. E traz à baila três tipos principais de reações.
De um lado, apresenta
os místicos, os crédulos, os verdadeiros fieis, que acreditam, sem titubear,
que a mortal doença seja “castigo divino”, por causa dos pecados e da corrupção
dos moradores da cidade, mas que crêem que o arrependimento seja o caminho
sensato a seguir. Estes entendem que a reconciliação com Deus seja a única
maneira de conter a evolução da peste bubônica, mediante rezas, jejuns,
promessas, sacrifícios e até mesmo autoflagelação, entre outros rituais
religiosos.
Jacobsen aponta um
segundo grupo, que também acredita que a causa se trate de castigo, mas que não
enxerga nenhuma saída, não vislumbra a mais remota possibilidade do perdão
divino. Por isso, em vez de arrepender-se, rebela-se contra o que entende ser
“vingança injusta” e despropositada da divindade. Seus integrantes, renunciando
a fé, concluem serem inúteis todos os rituais indicados pelas autoridades
eclesiásticas. E, em vez de se arrependerem, se voltam contra tudo o que lembre
religião, por julgarem ser inútil. Sem vislumbrar nenhuma saída que o livre da
fatalidade, esse grupo entrega-se à violência e a ações ditadas exclusivamente
pelos mais primitivos instintos, incapazes de raciocinar com um mínimo de bom
senso, tomado pelo pânico.
Finalmente, Jacobsen
apresenta uma terceira facção, a absolutamente cética, que não acredita e
jamais acreditou (antes mesmo do surgimento da epidemia) sequer na existência
de Deus. Sem vislumbrar qualquer possibilidade de ser poupada da morte, busca
satisfazer todas as fantasias, vícios e desejos, mesmo os mais secretos e
condenáveis, enquanto pode, sem freios de quaisquer espécies e sem medir
conseqüências. Essas pessoas sentem-se condenadas, sem chances de escapar e,
portanto, entendem que não há pior punição do que a morte, e que esta, estão
convictas, ser certa. Vai daí... O enredo imaginado por Jacobsen suscita,
principalmente, reflexões sobre a fragilidade das convicções de determinadas
pessoas e sobre como catástrofes tendem a revelar seu verdadeiro caráter. Tais
indivíduos, observe-se, em condições normais, quase sempre aparentam ser
sóbrios e equilibrados, dotados de sólidos princípios éticos e morais e de bom
senso, mas, em face do perigo, mostram sua real natureza corrupta.
O escritor dinamarquês
escreve, à certa altura: “(...) Um dia, quando já não se sabia o que fazer, do
balcão da Prefeitura, em meio aos sons das trombetas e das buzinas, a Santa
Virgem foi proclamada prefeita da cidade, agora e para sempre. Mas isso não
serviu para nada. Não havia coisa alguma que pudesse servir naquelas circunstâncias.
E quando as pessoas se deram conta e quando cresceu a crença de que o céu não
queria ou não podia ajudá-las, elas abaixaram os braços que haviam erguido para
saudar a Virgem, dizendo ‘deixemos chegar o que tem que chegar’. Pareceu que o
pecado coletivo brotou de repente de um mal estar secreto e clandestino, até
converter-se numa horrorosa, raivosa praga espiritual que, paralela ao contágio
físico, matava a alma, enquanto a doença devastava o corpo, tão incríveis eram
suas ações e enorme a sua depravação (...)”.
Como se vê, a fé dessa
gente era somente formal. Diluía-se com a rapidez de um raio, com incrível
facilidade, tão logo posta à prova. E Jacobsen prossegue em sua dramática
descrição de como imaginava que seria na prática uma situação como a que propôs
em sua novela: “(...) O ar encheu-se de blasfêmias e de impiedade, com os
gemidos dos glutões e os uivos dos embriagados. A noite mais selvagem não
escondia maior corrupção que a praticada em plena luz do dia (...)”.
Por que Jens Peter
Jacobsen escolheu especificamente Bergamo, cidadezinha medieval italiana, a
cerca de 50 minutos de carro de Milão, para cenário da sua história?
Provavelmente porque ela foi palco, entre os anos de 1629 e 1630, de grave
epidemia de peste bubônica e ele sabia disso. “Mas sua população reagiu da
forma como o escritor dinamarquês descreveu?”, perguntaria o leitor. Alguns,
provavelmente, sim. Talvez – e isso é suposição minha, sem nenhuma base em
qualquer fonte – o que motivou o autor dinamarquês a optar por essa cidadezinha
italiana pode ter sido o fato da população local haver escolhido, por
unanimidade, a Virgem Maria como sua prefeita perpétua para protegê-la da
peste. Como não a protegeu... Bergamo conta, até os dias de hoje, entre seus
preciosos monumentos históricos, com uma suntuosa catedral em homenagem à sua
padroeira: a Basílica de Santa Maria Maggiore, ponto turístico que atrai,
anualmente, visitantes do mundo todo.
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