Escritor com três
obras-primas
Pedro
J. Bondaczuk
O escritor Daniel Defoe
(cujo nome de batismo era Daniel Foe, sem o “de” à frente do sobrenome) nunca
deixou de se considerar (e de ser), antes e acima de tudo, jornalista. Isso
mesmo quando deixou de exercer o jornalismo, que lhe deu muita dor de cabeça
(inclusive a prisão) por suas críticas e denúncias contra os poderosos de
então, sobretudo a rainha Anna. Não se poderia esperar outra coisa. Afinal, não
se poderia esperar que em pleno século XVII houvesse liberdade de imprensa,
mesmo numa Inglaterra que sempre se mostrou tolerante com o direito dos
cidadãos à própria opinião. Os tempos eram outros, menos livres e maia
opressivos.
Daniel Defoe legou à
posteridade três grandes livros, três obras-primas, todos de muito sucesso –
tanto que são, volta e meia, reeditados e com público cativo – posto que com
escala decrescente de êxito. Se for levado em conta, apenas, o aspecto
lucratividade, “Robinson Crusoe” é imbatível. Lançado em 1719, em forma de
folhetins, de encarte do jornal “The Daily Post”, fez história logo de cara,
antes mesmo da publicação do último capítulo: foi o primeiro romance de todos
os tempos a ser publicado dessa forma. Só muito tempo depois, tanto na
Inglaterra quanto em outras partes do mundo, outros livros de ficção foram
publicados dessa forma, para que leitores colecionassem esses capítulos
separados até completarem, volume completo. Foi uma engenhosa fórmula que os
donos de jornais passaram a adotar, após a publicação de “Robinson Crusoe”,
para aumentar as vendas de seu produto. E, de fato, aumentaram.
Caso, no entanto, se
olhe para o aspecto da polêmica, o romance “Moll Flanders” bate, de dez a zero,
os outros dois. Vendeu, é certo (e continua vendendo) menos do que Robinson
Crusoe. Mas destacou-se pela ousadia. Daniel Defoe criou uma personagem
feminina ativíssima e bem sucedida, que de prostituta em Londres, foi exilada
para a América (os atuais Estados Unidos) e fez fortuna, numa época em que a
mulher era considerada um ser frágil e de baixa capacidade intelectual. Até
hoje, muito imbecil preconceituoso ainda pensa dessa maneira. No início do
século XX, o prestigioso crítico literário, Iann Watt, considerou Moll Flanders
uma criatura “masculinizada”. Ora, pois, pois...
Porém, em termos de
qualidade literária, a maioria dos críticos (e me incluo entre eles) considera
que o melhor livro de Daniel Defoe, disparado, é, justamente, o que vendeu
menos dos três: “A journal of the plague year” (edição inglesa) ou “Diário do
ano da praga” (título da edição espanhola) ou “Um diário do ano da peste” (na
edição brasileira). O nome não importa. Todos eles referem-se ao mesmo romance.
Aliás, há uma curiosidade a esse propósito, que não me custa trazer à baila,
embora fuja do assunto específico destes comentários. Os títulos de livros, na
época de Daniel Defoe (o que persistiu por muitos anos) eram “quilométricos”.
Robinson Crusoe, por exemplo, foi lançado como “The Life and Strange Surprizing
Adventures of Robinson Crusoe, of York, Mariner: Who lived Eight and Twenty
Years, all alone in an un‐inhabited
Island on the Coast of America, near the Mouth of the Great River of Oroonoque;
Having been cast on Shore by Shipwreck, wherein all the Men perished but
himself. With An Account how he was at last as strangely deliver’d by Pyrates”
(primeira edição em inglês). Ufa!!! No Brasil (e em todas as outras partes do
mundo) foi, prudentemente, encurtado. É, hoje, simplesmente, “Robinson Crusoe”.
Com Moll Flanders não
foi diferente. A história se repetiu. Esse livro foi lançado com este título
(já traduzido para o português): “Aventuras e Desventuras da Famosa Moll
Flanders & Cia., que viu a luz nas prisões de Newgate e que, ao longo de
uma vida rica em vicissitudes, a qual durou três vezes vinte anos, sem levar em
conta sua infância, foi durante doze anos prostituta, durante doze anos ladra,
casou-se cinco vezes (uma das quais com seu próprio irmão), ficou exilada
durante oito anos na Virgínia e que, enfim, fez fortuna, viveu muito
honestamente e morreu arrependida; vida contada segundo seus próprias
memórias”. Como se vê, o autor resumiu o enredo no próprio título. Hoje, não há
(felizmente) a mínima chance disso ocorrer.
E com o “Um diário do
ano da peste” foi diferente? Foi nada!!! Esse livro intrigante, repleto de
informações curiosas, foi lançado com este título, embora mais curto que os
dois anteriores: “Diário do ano da peste, observações ou memórias das
ocorrências mais notáveis, públicas e privadas, que aconteceram em Londres
durante a última grande provação em 1665”. Anthony Burgess, autor de “Laranja
mecânica”, entre outras obras, escreveu o seguinte sobre este intrigante e
emblemático livro do escritor-jornalista (ou jornalista-escritor, como
queiram): “O Diário é o protótipo de todas as obras que mostram o homem,
individual ou coletivamente, diante do terror. Defoe é um olho sem sono, uma
pena incansável. Sua escrita interpõe a mais fina textura entre o leitor e os
acontecimentos”. Eu só acrescentaria: “Pena que não alertou o leitor que era
ficção, baseada em fatos reais e não reportagem, como deu a entender.”.
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