Um idealista que não
viu seu sonho concretizado
Pedro
J. Bondaczuk
O grande sonho da vida
do escritor Bram Stocker – autor do hiper consagrado romance “Drácula” – ideal
pelo qual se empenhou enquanto vivo, foi o da independência da sua Irlanda
natal. Ele foi, durante toda a vida, mesmo quando se mudou para Londres, para
viver e trabalhar, bastante sensível à dominação da Inglaterra de sua terra
natal. Esse incômodo pode ser facilmente detectado em vários de seus textos, de
ficção ou não, em que sugere que essa submissão era uma tragédia. É verdade que
tratou disso quase sempre de forma metafórica. Evocou pragas misteriosas,
monstros sanguinários e cruéis e vários males vindos de fora. Todas essas
metáforas, todas mesmo, sem exceção, destinavam-se, única e tão somente, a
denunciar um mesmo fato: a opressão do povo irlandês por parte da Inglaterra.
O conto “O espectro da
morte” (prefiro seu título no original, que é “O gigante invisível”) – um dos
quatro que integram o livro “Contos de terror e arrepios” – não foge a essa
regra. A história não passa de pretexto para Bram Stocker, mais uma vez,
descrever a situação de extrema penúria da população irlandesa. Esta enfrentava
situação crítica, em todos os setores, notadamente no econômico, nos anos
finais do século XIX e iniciais do século XX. A fome era a mais dura das
realidades para a imensa maioria dos irlandeses. Os que não tinham a menor
esperança de reversão e entendiam que a desejada independência não passava de
delirante sonho (e que podiam, naturalmente), resolviam abandonar a ilha, em
busca de vida melhor e mais digna. Osd que não podiam...
O êxodo foi imenso.
Gigantescas vagas de emigrantes superlotavam navios e mais navios, a maioria
com destino aos Estados Unidos e, sobretudo, à região norte-americana da Nova
Inglaterra, sem cogitar em eventual regresso. Muitos, no entanto, optaram em
seguir para Londres, com a esperança de um dia poder voltar à Irlanda. O
próprio Bram Stocker foi um deles. Ressalte-se que o escritor não viveu para
ver seu sonho realizado. Não testemunhou, por exemplo, a Guerra
Anglo-Irlandesa, de 1919 a 1921, que resultou, se não na sonhada independência,
na autonomia política e administrativa da parte Sul da ilha. Morreu sete anos
antes. Certamente, gostaria de ver o atual Eire (nome oficial da Irlanda do Sul
independente). A independência definitiva apenas se consubstanciou em 18 de
abril de 1949, após, portanto, a Segunda Guerra Mundial.
No conto “O gigante
invisível” (reitero que, para mim, prevalece o título original e não o
traduzido para o português), Bram Stocker esbanja descrições da penúria
enfrentada pela população da cidade em que situa seu enredo. O ambiente social
que pinta, com cores fortes e realistas, é caracterizado por extrema miséria e
absurda imundície, cujo mau cheiro empesteia o ar das ruas e das casas. O
enredo desse conto pode ser resumido da seguinte forma: Uma órfã, chamada Zaya,
vive num país, mais especificamente, numa cidade em que um gigante foi
exterminado no passado e no qual a população vive vida dissoluta e imoral. Um
dia, a garotinha descobre outra iminente ameaça à localidade. Vê,
aproximando-se dela, outro gigante, belicoso e ameaçador, mas ninguém acredita
em seu alerta. Aliás, alguém crê. Trata-se de um velhinho que acredita em suas
advertências. Mas só. Esse gigante é a peste, que devastará a cidade e todo o
país antes de ir embora.
Neste trecho do conto,
que pincei para vocês, Bram Stocker escreve: “(...) Quando saíram do casebre,
Zaya viu o Gigante à frente deles, seguindo para a cidade. Os dois se
apressaram. Depois de atravessarem a fria névoa, Zaya olhou para trás e viu o
Gigante atrás deles. Rapidamente chegaram à cidade. Era uma coisa estranha de
se ver, esse velhinho e esta menininha correrem tanto para avisarem as pessoas
da terrível Peste que se aproximava. A longa barba e os cabelos brancos do
ancião e as tranças douradas da garotinha balançavam, tão rápidos eles corriam.
Os rostos de ambos estavam tão brancos como a morte. Atrás deles, visto,
somente, pelos olhos da menina de coração puro quando olhava para trás,
avançava, com passos lentos, o Gigante, que produzia uma sombra espectral no ar
noturno (...)”.
Trata-se de uma
parábola de Bram Stocker, que comporta múltiplas interpretações, de acordo com
o entendimento e a sensibilidade dos leitores. O escritor recorre a uma cidade
imaginária, a personagens fictícios e a uma figura alegórica, para dar seu
recado, inequivocamente político. O gigante, por exemplo, não seria uma figura
concreta, real, física, mas a representação de um sistema econômico ou de uma
entidade política, perversa e repressora. Zaya, por seu turno, seria o
arquétipo do bem e da inocência. Já o ancião, ao meu ver, simboliza o
conhecimento e a experiência, nem sempre (ou raramente) levados em conta por
uma população leviana e corrupta. De qualquer forma, a peste está presente
neste magnífico conto, embora de forma muito diferente da retratada por muitos
outros escritores. Diferente e genial.
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