Sunday, May 29, 2016

Um idealista que não viu seu sonho concretizado


Pedro J. Bondaczuk

O grande sonho da vida do escritor Bram Stocker – autor do hiper consagrado romance “Drácula” – ideal pelo qual se empenhou enquanto vivo, foi o da independência da sua Irlanda natal. Ele foi, durante toda a vida, mesmo quando se mudou para Londres, para viver e trabalhar, bastante sensível à dominação da Inglaterra de sua terra natal. Esse incômodo pode ser facilmente detectado em vários de seus textos, de ficção ou não, em que sugere que essa submissão era uma tragédia. É verdade que tratou disso quase sempre de forma metafórica. Evocou pragas misteriosas, monstros sanguinários e cruéis e vários males vindos de fora. Todas essas metáforas, todas mesmo, sem exceção, destinavam-se, única e tão somente, a denunciar um mesmo fato: a opressão do povo irlandês por parte da Inglaterra.

O conto “O espectro da morte” (prefiro seu título no original, que é “O gigante invisível”) – um dos quatro que integram o livro “Contos de terror e arrepios” – não foge a essa regra. A história não passa de pretexto para Bram Stocker, mais uma vez, descrever a situação de extrema penúria da população irlandesa. Esta enfrentava situação crítica, em todos os setores, notadamente no econômico, nos anos finais do século XIX e iniciais do século XX. A fome era a mais dura das realidades para a imensa maioria dos irlandeses. Os que não tinham a menor esperança de reversão e entendiam que a desejada independência não passava de delirante sonho (e que podiam, naturalmente), resolviam abandonar a ilha, em busca de vida melhor e mais digna. Osd que não podiam...

O êxodo foi imenso. Gigantescas vagas de emigrantes superlotavam navios e mais navios, a maioria com destino aos Estados Unidos e, sobretudo, à região norte-americana da Nova Inglaterra, sem cogitar em eventual regresso. Muitos, no entanto, optaram em seguir para Londres, com a esperança de um dia poder voltar à Irlanda. O próprio Bram Stocker foi um deles. Ressalte-se que o escritor não viveu para ver seu sonho realizado. Não testemunhou, por exemplo, a Guerra Anglo-Irlandesa, de 1919 a 1921, que resultou, se não na sonhada independência, na autonomia política e administrativa da parte Sul da ilha. Morreu sete anos antes. Certamente, gostaria de ver o atual Eire (nome oficial da Irlanda do Sul independente). A independência definitiva apenas se consubstanciou em 18 de abril de 1949, após, portanto, a Segunda Guerra Mundial.

No conto “O gigante invisível” (reitero que, para mim, prevalece o título original e não o traduzido para o português), Bram Stocker esbanja descrições da penúria enfrentada pela população da cidade em que situa seu enredo. O ambiente social que pinta, com cores fortes e realistas, é caracterizado por extrema miséria e absurda imundície, cujo mau cheiro empesteia o ar das ruas e das casas. O enredo desse conto pode ser resumido da seguinte forma: Uma órfã, chamada Zaya, vive num país, mais especificamente, numa cidade em que um gigante foi exterminado no passado e no qual a população vive vida dissoluta e imoral. Um dia, a garotinha descobre outra iminente ameaça à localidade. Vê, aproximando-se dela, outro gigante, belicoso e ameaçador, mas ninguém acredita em seu alerta. Aliás, alguém crê. Trata-se de um velhinho que acredita em suas advertências. Mas só. Esse gigante é a peste, que devastará a cidade e todo o país antes de ir embora.

Neste trecho do conto, que pincei para vocês, Bram Stocker escreve: “(...) Quando saíram do casebre, Zaya viu o Gigante à frente deles, seguindo para a cidade. Os dois se apressaram. Depois de atravessarem a fria névoa, Zaya olhou para trás e viu o Gigante atrás deles. Rapidamente chegaram à cidade. Era uma coisa estranha de se ver, esse velhinho e esta menininha correrem tanto para avisarem as pessoas da terrível Peste que se aproximava. A longa barba e os cabelos brancos do ancião e as tranças douradas da garotinha balançavam, tão rápidos eles corriam. Os rostos de ambos estavam tão brancos como a morte. Atrás deles, visto, somente, pelos olhos da menina de coração puro quando olhava para trás, avançava, com passos lentos, o Gigante, que produzia uma sombra espectral no ar noturno (...)”.

Trata-se de uma parábola de Bram Stocker, que comporta múltiplas interpretações, de acordo com o entendimento e a sensibilidade dos leitores. O escritor recorre a uma cidade imaginária, a personagens fictícios e a uma figura alegórica, para dar seu recado, inequivocamente político. O gigante, por exemplo, não seria uma figura concreta, real, física, mas a representação de um sistema econômico ou de uma entidade política, perversa e repressora. Zaya, por seu turno, seria o arquétipo do bem e da inocência. Já o ancião, ao meu ver, simboliza o conhecimento e a experiência, nem sempre (ou raramente) levados em conta por uma população leviana e corrupta. De qualquer forma, a peste está presente neste magnífico conto, embora de forma muito diferente da retratada por muitos outros escritores. Diferente e genial.


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