Epidemia de peste
extinta por um grande incêndio
Pedro
J. Bondaczuk
A Inglaterra – como
ademais praticamente todas as regiões do mundo e, especialmente da Europa – foi
cenário de inúmeras epidemias. E não somente de peste bubônica, mas também do
cólera, varíola, tifo etc.etc.etc., todas com absurda quantidade de mortos no
seu rastro. As condições sanitárias no país, incluindo Londres, eram péssimas.
Não havia qualquer preocupação com medidas de higiene, nem mesmo as mais
primárias, hoje até mesmo instintivas, o que favorecia o surgimento de vários
agentes patogênicos, tanto vírus quanto bactérias. Por exemplo, esgoto corria
solto nas ruas das principais cidades (incluindo a capital), praticamente todas
sem calçamento, que se transformavam em imensos lodaçais em épocas de chuva –
que ali eram (e ainda são) freqüentes. Lixo acumulava-se por toda a parte,
propiciando grande população de pragas, sobretudo de ratos, baratas, pulgas e
percevejos, entre tantas outras. A proporção de roedores, por exemplo, estimada
por cronistas da época, seria de cinco para cada habitante da cidade (e
desconfio que essa cifra era super, hiper, mega subestimada).
Somado a tudo isso, a
Medicina era tão tosca que mal merecia essa designação. Era mais uma prática
empírica, na base de tentativa e erro, que propiciava, ademais, a existência de
uma legião de charlatães. Até meados do século XIX, desconhecia-se, até mesmo,
a simples existência de vírus e bactérias, causadores das diversas doenças
(epidêmicas ou não). Seria de se estranhar,
pois, se não ocorressem tantas, tão freqüentes e catastróficas epidemias com
estas condições. O ambiente era para lá de propício para isso. Esta era, claro,
a realidade não somente da Inglaterra, mas praticamente do mundo todo. Nem é
preciso ressaltar que nos grotões miseráveis da Europa, Ásia, África e das
Américas as coisas eram muito, muitíssimo piores. Mas tratemos, pelo menos por
enquanto, de uma epidemia específica que devastou a população de Londres. Não
me refiro à pandemia de 1347, que por muito pouco não transformou a Europa
(pelo menos sua maior parte) em um “continente fantasma”. A epidemia que trago
à baila foi a dos anos de 1665 e 1666 que, por paradoxal que pareça, foi
contida e debelada não por eficazes medidas profiláticas (longe disso), mas por
outra catástrofe de dimensões épicas: um monstruoso incêndio, de quatro dias de
duração, que transformou Londres num inferno.
A epidemia, sozinha,
causou a morte de cerca de 75 mil pessoas (e tenho sérias dúvidas sobre
estimativas desse tipo, que raramente são minimamente exatas), de acordo com
relatos de escritores da época. A peste estava incontrolável, fazendo,
diariamente, dezenas, centenas, milhares de vítimas fatais. Mas eis que, em
setembro de 1666, outra tragédia, a do fogo, viria se somar à mortal doença.
Durante quatro desesperadores dias, as chamas devoraram, num piscar de olhos, e
reduziram a cinzas mais de treze mil casas, oitenta e sete igrejas e deixaram
um número estimado de oitenta mil londrinos desabrigados. E o desastre não foi
causado por nenhum piromaníaco maluco, com complexo de Nero. O incêndio, que
começou em uma padaria, foi absolutamente acidental, conforme apuraram as
autoridades.
Embora o fogo tenha
matado até mais pessoas do que a peste, acabou evitando, por estranho que
pareça, uma catástrofe potencialmente muito maior. Destruiu vários bairros
insalubres, com longo histórico de servirem de foco para diversas epidemias
anteriores (inclusive esta, de 1665). Tanto isso é verdade que depois do
incêndio, a peste bubônica cessou por completo, como que num passe de mágica.
Centenas de milhares de ratos foram, também, providencialmente imolados
deixando de contaminar, dessa forma, uma incontável quantidade de pessoas. Dois
londrinos, de perfis completamente diferentes, legaram-nos relatos diferentes
sobre a epidemia de 1665: Samuel Pepys e Daniel Defoe.
O primeiro foi um
funcionário público que nunca pensou em ser escritor. Já o segundo, tornou-se
expoente da Literatura inglesa, com livros que ainda hoje vendem aos milhões,
como “A vida amorosa de Moll Flanders”, “A journal of the plaguer year” e,
sobretudo, “Robinson Crusoe”. Todavia, o relato que merece credibilidade é, sem
dúvida, o de Pepys e por diversas razões. Cito, apenas, duas delas. A primeira
é que testemunhou tanto a epidemia, quanto o grande incêndio de Londres. A
segunda, que registrou a evolução das catástrofes dia a dia, em um diário que
deu o que fazer aos pesquisadores para decifrá-lo, já que foi escrito
taquigraficamente. Estava claro que nem lhe passava pela cabeça que esses
registros fossem transformados em um livro. Mas foram. Isso, porém, exigiu um
trabalho danado. Foram necessários dois séculos completos para que aquilo que
esse homem escreveu fosse transcrito para a linguagem comum. Seu diário,
transformado em livro, só teve versão definitiva em 1970, ano em que foi,
finalmente, publicado. Tratarei, oportunamente, desses registros, feitos por
nove anos e que só foram interrompidos porque Pepys foi acometido de uma grave
doença nos olhos, que o deixou praticamente cego.
Já o texto de Daniel
Defoe não merece tanta credibilidade e por um motivo muito simples. Embora
tenha sido, reconhecidamente, ótimo escritor e competente jornalista, tinha,
somente, cinco anos de idade quando a epidemia ocorreu e seis quando se deu o
grande incêndio de Londres. Tudo o que cita, portanto, é, digamos, de “segunda
mão”, conseqüência de pesquisas, e não de vivência. São, todavia, apesar das
restrições a Defoe, textos que merecem comentários detalhados e cuidadosos, por
nos revelarem como era a Londres por ocasião dessas duas catástrofes, o que me
proponho a fazer na sequência.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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