Por
um prato de comida
Pedro J. Bondaczuk
O Brasil tem, de acordo com levantamento feito pelo
DataFolha e publicado no suplemento "Mapa da Exclusão", do jornal
Folha de S. Paulo, em 26 de setembro passado, 25 milhões de miseráveis,
espalhados por seu vasto território. Esse contingente não está concentrado,
como muitos pensam, em determinada região (embora a maioria, 45%, esteja no
Nordeste), formando extensos bolsões de miséria. Tais brasileiros, em estado de
extrema carência, desnutridos, doentes, sem instrução e excluídos não apenas do
desenvolvimento, mas da própria vida, vegetam tanto em vilarejos decadentes e
parados no tempo, quanto em favelas e cortiços das periferias de sofisticadas
cidades, como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Recife,
Porto Alegre, Belém, Brasília e...Campinas.
Apesar da boa vontade dos pesquisadores, dada a
vastidão do território nacional, não se sabe com exatidão a quanto ascende a
verdadeira cifra desses indivíduos, que sobrevivem, no "fundo do
poço", tendo que usar da criatividade, ditada pelo desespero, para obter
um simples prato de comida. Não se pode fiar em estatísticas, principalmente as
oficiais, conforme a experiência já demonstrou fartamente. Para essa gente, que vegeta no extremo da
miséria, três refeições diárias são um luxo a que não tem acesso. Quando essas
pessoas conseguem qualquer coisa para "tapear" o estômago, é motivo
de euforia. E elas estão em todos os lugares --- como aquele personagem do
escritor peruano Mário Scorza, que era tão pobre, que chegava a ser
"invisível" --- sobrevivem ao nosso redor, cruzamos (indiferentes)
com muitas delas nas ruas, diariamente, sem atentar para o seu drama. Quantas
elas são, por exemplo, em Campinas?
O número exato ninguém tem. Estima-se em oito mil as
crianças carentes e famílias em estado de miséria em bairros periféricos desta
metrópole interiorana, altamente industrializada, dotada de três universidades,
que conta com renomados institutos de pesquisa e dinâmico mercado de consumo.
Essa quantidade pode ser (e provavelmente é) maior, muito maior. Quem se
importa com esses brasileiros? Talvez os políticos em véspera de eleições,
esquecendo-os tão logo terminem as apurações de votos. Possivelmente algumas
(poucas) almas boas, que ainda não perderam a sensibilidade. Mas não,
certamente, os governos.
O Diário do Povo, em excelente reportagem publicada
em 24 de outubro passado, revelou que famílias do Parque Oziel e Jardim Monte
Cristo matam a fome de seus filhos com o chamado "salsichão". Não se
trata, como o nome sugere, de embutido dos nossos melhores frigoríficos, com
receita importada da Alemanha. Longe disso. Antes fosse! Esse
"alimento", devorado como se fosse um sofisticado prato da nossa
culinária, não passa de uma nojenta mistura (pasmem!) de papelão ralado com
tomates, óleo e sal, cozidos. Isto quando, quem os prepara, consegue ter acesso
ao vegetal, mesmo que (digamos), um "tanto apodrecido".
A matéria em questão não trata da fome na Etiópia,
na Somália, em Moçambique ou no Sudão, países africanos periodicamente às
voltas com esse flagelo, que freqüentam quase todos os anos as páginas do
noticiário internacional por essa razão. É do Brasil! Mais do que isso, é da
Campinas da qual tanto nos orgulhamos! É lamentável, mas é a realidade deste
"país do futuro", com um contingente de miseráveis equivalente a três
Suécias, ou à população total do Peru!
Imaginem o efeito que essa pasta avermelhada causa no
organismo! Além de não nutrir, o papelão tende a ter efeitos tóxicos, dados os
produtos químicos utilizados na sua fabricação. O lado bom da reportagem do
Diário do Povo é que ela serviu para sensibilizar várias pessoas, muitas de
parcas posses, que no domingo levaram donativos em alimentos para os
flagelados. Algumas campanhas são desenvolvidas na cidade, para garantir comida
a essas crianças ameaçadas pela fome, o que mostra que o campineiro é
solidário. Mas os alimentos e dinheiro arrecadados uma hora acabam. E quando
acabarem... o que vai ocorrer? Novamente, as crianças do Oziel e Jardim Monte
Cristo vão disputar os "salsichões", como manjares de deuses!
O sentimento que essa dura realidade nos dá é o
mesmo expressado pelo leitor que se identificou apenas como Doli, na matéria
publicada pelo Diário do Povo no dia 26 passado: "A gente vê tanta
reportagem a respeito da fome na África. E pensar que aqui do nosso lado tem
gente comendo papelão para não morrer! É de doer!" Se é... Sentimo-nos
pequenos, aparvalhados, incrédulos, impotentes... Diante desse quadro dantesco,
de miserabilidade e abandono, não há como não dar razão ao economista Amartya
Sen (ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 1998), quando afirma: "Nenhum
governo que tolera fomes periódicas é verdadeiramente democrático". E não
importa a sua ideologia ou a quantidade de apoios que reúna.
(Artigo publicado na página 2, Opinião, do Diário do
Povo em 3 de novembro de 1998)
Acompanhe-me pelo twitter: @bondasczuk
No comments:
Post a Comment