Maquiavel e a epidemia
de peste de 1527
Pedro
J. Bondaczuk
O leitor seria capaz de
identificar o autor desta declaração?: “Mas a ambição do homem é tão grande
que, para satisfazer uma vontade presente, não pensa no mal que daí a algum
tempo pode resultar dela”. Adianto que não se trata de nenhuma personalidade
contemporânea. A afirmação contém tanto de verdade, que eu não relutaria em
assiná-la embaixo. Creio que você também não hesitaria, estou certo? O mesmo
autor afirmou, ainda: “Como é perigoso libertar um povo que prefere a
escravidão!” E também disse: “Em política, os aliados de hoje são os inimigos
de amanhã”. Juro que não se trata de nenhum observador de nossa (brasileira)
confusa realidade institucional. Para culminar, cito este pitoresco desejo, de
pura ironia, que manifestou com estas palavras: “Quero ir para o inferno, não
para o céu. No inferno, gozarei da companhia de papas, reis e príncipes. No
céu, só terei por companhia mendigos, monges, eremitas e apóstolos”.
O autor destas
polêmicas (e põe polêmicas nisso!) declarações, entre uma infinidade de outras
mais, viveu num tempo já bastante remoto, nos séculos XV e XVI, em que
manifestar opiniões tão politicamente “incorretas” poderia custar a cabeça de
quem ousasse agir assim. É tido e havido (com absoluta justiça, no meu
entender) como o primeiro “cientista político” da história. Aliás, é
considerado o “pai” dessa disciplina. Refiro-me a um sujeito que despertou
tantas inimizades e antipatias, que seu sobrenome é, hoje, raiz de um adjetivo
nada lisonjeiro, sinônimo de pérfido, de alguém que age sem escrúpulos. Já
concluíram de quem se trata? Quem pensou em Nicoló Maquiavel acertou. Seu livro
mais famoso (entre os tantos que escreveu, já que legou uma obra relativamente
extensa), “O príncipe”, é apontado, através dos tempos, como exemplo de como
não se deve fazer política. Embora seus detratores não entendam, essa era sua
verdadeira intenção.
Maquiavel nunca
defendeu que a política devesse ser esse jogo sujo de vale tudo, sem ética e
sem escrúpulos, que nega as leis morais, em que os fins justificam os meios, o
que era no seu tempo (e o que é, salvo exceções, e mais do que nunca, na
atualidade). Limitou-se a relatar o que essa atividade “era” e não o que
“deveria ser”. Seus detratores é que não entenderam sua ironia e sua incrível
capacidade de observação. Daí haverem criado os adjetivos “maquiavélico” e
derivados, para caracterizar aquela “esperteza” negativa e condenável, aquela
astúcia que descamba para a malandragem. Nicoló Maquiavel, nascido em 3 de maio
de 1469, foi um dos gênios do Renascimento. Foi historiador, poeta, diplomata e
até músico (creiam!). Foi um dos intelectuais mais lúcidos do seu tempo. Tem
que ser considerado como uma das inúmeras “glórias” de Florença, cidade em que
nasceu e em que morreu (em 21 de junho de 1527), que foi berço de tantos gênios
das artes, da cultura e do pensamento contemporâneo, e que lançaram os
fundamentos da atual civilização. Creiam-me, não exagero.
Hoje, porém, não quero
tratar de sua rica biografia e nem de seus livros famosos, como “O príncipe”,
“Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio”, da peça “A Mandrágora”, do
romance “Novella di Belfagor”, do poema “Asino d’oro” e nem de seus vários
tratados histórico-políticos. Meu foco é um texto de Maquiavel praticamente
esquecido, intitulado “Descrição da peste de Florença do ano de 1527”. O título
já define seu teor. Frise-se que o fim da Idade Média não acabou com as
epidemias mortíferas que assolavam várias partes do mundo, entre elas a Europa.
É certo que não houve nenhuma outra pandemia como a de 1347. Nem por isso,
todavia, as epidemias deixaram de ocorrer ou eram menos mortíferas. E Florença
teve várias e várias e várias delas.
O que chama a atenção
na descrição de Maquiavel do caso ocorrido em 1527 em Florença é o inusitado
“tom poético” que ele empregou para descrever tão terrível flagelo. Ele
escreveu, em determinado trecho desse curioso texto: “(...) Estava sentada nos
degraus de mármore da grande capela e se apoiava sobre o lado esquerdo, como
uma pessoa esgotada pela dor. Seu braço reluzente de brancura sustentava a
fronte, que o sofrimento havia tornado mais pálida. Este braço, por seu
tamanho, pertencia a uma mulher bem feita e de dimensões equilibradas. Podia-se
imaginar sem problemas que todos os membros desse belo corpo formavam um
conjunto tão perfeito que, se não estivesse coberto por uma mortalha, sua admirável
beleza teria deslumbrado todos os olhares. Mas, deixando a imaginação adivinhar
livremente o que não se via, só lhes descreverei o que era possível ver (...)”.
Na sequência, Maquiavel
descreve assim a infeliz vítima da peste bubônica (que não identificou) que
agonizava nos degraus de uma igreja: “(...) Suas carnes, frescas e elásticas,
tinham a brancura do marfim e sua delicadeza era tão grande que conservava a
suavidade e o frescor, da mesma maneira que num campo a erva florida e úmida conserva
o orvalho que cede sob os movimentos do mais ligeiro inseto. Seus olhos, dos
quais seria melhor não dizer nada para não dizer pouco, pareciam duas estrelas
brilhantes. E os abria tão a propósito, e de maneira tão amável, que poderíamos
crer estarmos vendo um paraíso aberto (...)”. Esta foi a forma como Maquiavel
descreveu uma vítima, agonizante, da peste negra. Nenhum poeta faria melhor.
Surpreende, sobretudo, tendo em conta que quem fez essa lírica descrição era
tido e havido como cínico implacável, como crítico feroz das fraquezas e
misérias humanas. No caso, porém, vislumbrou somente beleza, posto que
trágica...
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