Tuesday, May 10, 2016

Maquiavel e a epidemia de peste de 1527


Pedro J. Bondaczuk

O leitor seria capaz de identificar o autor desta declaração?: “Mas a ambição do homem é tão grande que, para satisfazer uma vontade presente, não pensa no mal que daí a algum tempo pode resultar dela”. Adianto que não se trata de nenhuma personalidade contemporânea. A afirmação contém tanto de verdade, que eu não relutaria em assiná-la embaixo. Creio que você também não hesitaria, estou certo? O mesmo autor afirmou, ainda: “Como é perigoso libertar um povo que prefere a escravidão!” E também disse: “Em política, os aliados de hoje são os inimigos de amanhã”. Juro que não se trata de nenhum observador de nossa (brasileira) confusa realidade institucional. Para culminar, cito este pitoresco desejo, de pura ironia, que manifestou com estas palavras: “Quero ir para o inferno, não para o céu. No inferno, gozarei da companhia de papas, reis e príncipes. No céu, só terei por companhia mendigos, monges, eremitas e apóstolos”.

O autor destas polêmicas (e põe polêmicas nisso!) declarações, entre uma infinidade de outras mais, viveu num tempo já bastante remoto, nos séculos XV e XVI, em que manifestar opiniões tão politicamente “incorretas” poderia custar a cabeça de quem ousasse agir assim. É tido e havido (com absoluta justiça, no meu entender) como o primeiro “cientista político” da história. Aliás, é considerado o “pai” dessa disciplina. Refiro-me a um sujeito que despertou tantas inimizades e antipatias, que seu sobrenome é, hoje, raiz de um adjetivo nada lisonjeiro, sinônimo de pérfido, de alguém que age sem escrúpulos. Já concluíram de quem se trata? Quem pensou em Nicoló Maquiavel acertou. Seu livro mais famoso (entre os tantos que escreveu, já que legou uma obra relativamente extensa), “O príncipe”, é apontado, através dos tempos, como exemplo de como não se deve fazer política. Embora seus detratores não entendam, essa era sua verdadeira intenção.

Maquiavel nunca defendeu que a política devesse ser esse jogo sujo de vale tudo, sem ética e sem escrúpulos, que nega as leis morais, em que os fins justificam os meios, o que era no seu tempo (e o que é, salvo exceções, e mais do que nunca, na atualidade). Limitou-se a relatar o que essa atividade “era” e não o que “deveria ser”. Seus detratores é que não entenderam sua ironia e sua incrível capacidade de observação. Daí haverem criado os adjetivos “maquiavélico” e derivados, para caracterizar aquela “esperteza” negativa e condenável, aquela astúcia que descamba para a malandragem. Nicoló Maquiavel, nascido em 3 de maio de 1469, foi um dos gênios do Renascimento. Foi historiador, poeta, diplomata e até músico (creiam!). Foi um dos intelectuais mais lúcidos do seu tempo. Tem que ser considerado como uma das inúmeras “glórias” de Florença, cidade em que nasceu e em que morreu (em 21 de junho de 1527), que foi berço de tantos gênios das artes, da cultura e do pensamento contemporâneo, e que lançaram os fundamentos da atual civilização. Creiam-me, não exagero.

Hoje, porém, não quero tratar de sua rica biografia e nem de seus livros famosos, como “O príncipe”, “Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio”, da peça “A Mandrágora”, do romance “Novella di Belfagor”, do poema “Asino d’oro” e nem de seus vários tratados histórico-políticos. Meu foco é um texto de Maquiavel praticamente esquecido, intitulado “Descrição da peste de Florença do ano de 1527”. O título já define seu teor. Frise-se que o fim da Idade Média não acabou com as epidemias mortíferas que assolavam várias partes do mundo, entre elas a Europa. É certo que não houve nenhuma outra pandemia como a de 1347. Nem por isso, todavia, as epidemias deixaram de ocorrer ou eram menos mortíferas. E Florença teve várias e várias e várias delas.

O que chama a atenção na descrição de Maquiavel do caso ocorrido em 1527 em Florença é o inusitado “tom poético” que ele empregou para descrever tão terrível flagelo. Ele escreveu, em determinado trecho desse curioso texto: “(...) Estava sentada nos degraus de mármore da grande capela e se apoiava sobre o lado esquerdo, como uma pessoa esgotada pela dor. Seu braço reluzente de brancura sustentava a fronte, que o sofrimento havia tornado mais pálida. Este braço, por seu tamanho, pertencia a uma mulher bem feita e de dimensões equilibradas. Podia-se imaginar sem problemas que todos os membros desse belo corpo formavam um conjunto tão perfeito que, se não estivesse coberto por uma mortalha, sua admirável beleza teria deslumbrado todos os olhares. Mas, deixando a imaginação adivinhar livremente o que não se via, só lhes descreverei o que era possível ver (...)”.
      
Na sequência, Maquiavel descreve assim a infeliz vítima da peste bubônica (que não identificou) que agonizava nos degraus de uma igreja: “(...) Suas carnes, frescas e elásticas, tinham a brancura do marfim e sua delicadeza era tão grande que conservava a suavidade e o frescor, da mesma maneira que num campo a erva florida e úmida conserva o orvalho que cede sob os movimentos do mais ligeiro inseto. Seus olhos, dos quais seria melhor não dizer nada para não dizer pouco, pareciam duas estrelas brilhantes. E os abria tão a propósito, e de maneira tão amável, que poderíamos crer estarmos vendo um paraíso aberto (...)”. Esta foi a forma como Maquiavel descreveu uma vítima, agonizante, da peste negra. Nenhum poeta faria melhor. Surpreende, sobretudo, tendo em conta que quem fez essa lírica descrição era tido e havido como cínico implacável, como crítico feroz das fraquezas e misérias humanas. No caso, porém, vislumbrou somente beleza, posto que trágica...


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