Competente e precisa
descrição da peste
Pedro
J. Bondaczuk
A devastadora pandemia
de peste bubônica, que a partir de 1347 assolou, praticamente, toda a Europa,
causando milhões de mortes, teve, em Giovanni Boccaccio, um dos mais perfeitos
e competentes cronistas. Sua obra-prima, o “Decamerão”, é um dos documentos
mais confiáveis, detalhados e verossímeis desse flagelo. Nenhum historiador
conseguiu sequer chegar perto da objetividade demonstrada por esse escritor e
num livro de ficção, diga-se de passagem. Mesmo tratando especificamente da
pandemia apenas no início da sua obra, a peste sempre esteve presente em toda a
narrativa, como pano de fundo de todo o enredo. Seu relato “apresenta” a doença
para o leitor, do presente e do futuro, com meticulosidade poucas vezes vista
em qualquer outro autor.
Em alguns pares de
parágrafos, Boccaccio explicou como a peste se manifestava, como evoluía, quais
os sintomas que apresentava etc.etc.etc. Mas não se limitou a esses aspectos,
digamos, “médicos” da enfermidade. Descreveu, de maneira nua e crua, a reação
das pessoas diante da perspectiva de uma morte horrenda. Ademais, ressaltou a
ineficácia, e portanto a inutilidade, das medidas adotadas para combater a
peste, principalmente as de caráter espiritual, já que havia praticamente
consenso de que a epidemia era “castigo divino” que requeria arrependimento dos
pecados, com rezas, procissões, promessas e todo o arsenal religioso
recomendado pela Igreja Católica, religião majoritária ou, para ser exato, praticamente única naquele tempo e lugar.
Boccaccio abordou,
também, a ação de uma Medicina empírica e ineficaz que, a rigor, nem merecia
esse nome, com seus “remédios” que nada remediavam e suas práticas até
absurdas. São de se notar suas descrições de dois tipos opostos de reações por
parte das pessoas ameaçadas pela implacável doença, incompreensível para elas e
que consideravam como uma espécie de “roleta russa”, que poderia atingi-las ao
sabor do acaso. De um lado, estavam os que se entregavam a uma luxúria desenfreada,
passando a beber sem moderação e a praticar todos os excessos, sobretudo
sexuais, no afã de “aproveitar” a vida, antes que a morte os colhesse. No outro
extremo, estavam os que se recolhiam em grupos, orando fervorosamente,
praticando o ascetismo e arrependendo-se até de pecados imaginários. Boccaccio
destaca que entre essas duas correntes de comportamento havia uma terceira, que
ora se entregava à luxúria e ao desregramento, ora fazia promessas, jejuns e
autoflagelações.
O autor do “Decamerão”
escreve, em determinado trecho: “(...) Tínhamos já atingido o ano ... de 1348,
quando, na mui importante cidade de Florença... sobreveio a mortífera
pestilência... Nenhuma prevenção valeu, baldadas todas as providências dos
homens... Nem conselho de médico, nem virtude de mezinha alguma parecia trazer
a cura ou proveito para o tratamento (...)”
Destaca, também: “(...) E não valendo contra ela nenhum saber nem
providência humana (como a limpeza da cidade de muitas imundícies ordenadas
pelos encarregados disso e a proibição, a todos enfermos, de entrarem nela,
além dos muitos conselhos dados para conservar a salubridade), nem valendo,
tampouco, as humildes súplicas dirigidas a Deus pelas pessoas devotas, não uma
vez, mas muitas, através de procissões e de outras formas de manifestação de
fé, quase no início da primavera do ano citado (1348), a peste começou
horrivelmente e em assombrosa maneira, a mostrar seus dolorosos efeitos (...)”.
A seguir, com a
meticulosidade de um infectologista (que obviamente não era), com objetividade
científica de causar inveja a profissionais de saúde atuais, Boccaccio observa
a diferença entre a epidemia que testemunhou e as similares ocorridas na Ásia,
além de descrever os sintomas. Escreveu: “(...) A peste, em Florença, não teve
o mesmo comportamento que no Oriente. Neste, quando o sangue saía pelo nariz,
fosse de quem fosse, era sinal evidente de morte inevitável... Apareciam no
começo, tanto em homens como em mulheres, ou na virilha ou na axila, algumas
inchações... a que o povo chamava de bubões... Em seguida, o aspecto da doença
começou a alterar-se. Apareciam manchas escuras ou pálidas nos doentes. Nuns,
eram grandes e espalhadas; noutros, pequenas e abundantes (...)"
Numerosas levas de
pessoas, aterrorizadas, desesperadas, em pânico saíam de Florença e das outras
cidades atingidas pela pandemia, vagando pelos campos ou reunindo-se nas
igrejas. Foi num desses caóticos êxodos em massa que Boccaccio situou o
inusitado grupo que ele criou para a narrativa do “Decamerão”. Note-se que as
dez pessoas que o escritor “designou” para narrarem as cem novelas do livro,
têm uma simbologia tanto numerológica, quanto mística. As sete moças do grupo,
por exemplo, representam as Quatro Virtudes Cardinais – Prudência, Justiça,
Fortaleza, Temperança – e as Três Virtudes Teologais - Fé, Esperança e
Caridade. Já os três homens representam a Divisão da Alma em Três Partes:
Razão, Ira e Luxúria da tradição helênica.
As sete mulheres, cuja
mais idosa era Pampinéia, tinham idades entre 18 e 28 anos. Eram bonitas, de
origem nobre e seu comportamento era honesto. Antes de deixarem Florença, para
fugirem da peste, agruparam-se, por acaso, na igreja de Santa Maria Novela.
Ali, fizeram um pacto e resolveram continuar juntas, acontecesse o que
acontecesse. A seguir, surgiram os três homens, com idades a partir dos 25
anos. Eram agradáveis, bem apessoados e com esmerada educação. Eles foram à
igreja com um objetivo específico: para procurarem suas respectivas amadas,
que, aliás, eram três das sete moças, ali reunidas. Foi quando o grupo, agora
de dez, resolveu fugir de Florença, abrigando-se num castelo, dando início, de
fato, ao genial enredo do “Decamerão”. Por tudo isso, considero esse livro um
primor literário, original e inovador, que por romper com a mítica literatura
medieval, lançou as verdadeiras bases do realismo.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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