Wednesday, May 18, 2016

Implacável registro da vida londrina do século XVII

Pedro J. Bondaczuk

O relato feito pelo inglês Samuel Pepys da epidemia de peste bubônica que arrasou Londres em 1666 e 1667, e do incêndio que atingiu a capital do Império em setembro de 1667 (que não só contribuiu, como virtualmente eliminou a expansão e continuidade desse flagelo que, se não fosse o fogo, provavelmente duraria muito mais tempo), é um dos mais detalhados, verossímeis e completos que se conhece. O autor desses registros, todavia, sequer era escritor. E, pelo que se sabe dele, jamais teve essa pretensão. Aliás, nunca lhe passou, nem mesmo remotamente, pela cabeça que seus diários pessoais – um calhamaço de seis grossos volumes, com mais de três mil páginas de texto, em letra miudinha – fossem transformados em livro. Mas foram. E constituem, provavelmente, o melhor relato de todos os tempos não só desse caso específico de Londres, mas de todas as epidemias que já assolaram a humanidade desde o surgimento do homem.

A convicção de que Samuel Pepys fez esses registros como uma espécie de desabafo pessoal (personalíssimo) super íntimo e hiper secreto sobre o que pensava e fazia é seu próprio teor. São revelações do tipo que não se fazem nem para a pessoa na qual se tenha irrestrita e a mais absoluta confiança e que se deseja, portanto, que permaneçam secretas. Tanto isso é verdade que o diário, escrito durante nove anos, iniciado quando o autor tinha vinte e sete anos de idade, foi todo redigido de forma taquigráfica (escrita que demandou anos para ser compreendida e transcrita na língua corrente utilizada no cotidiano). Nele, Pepys não se limitou a relatar fatos. Traçou um grande painel da vida inglesa do seu tempo, em linguagem nua e crua, repleta, inclusive, de palavrões, retratando principalmente a alta burguesia. Muito sincero, sinceridade esta que provavelmente não teria caso sequer desconfiasse que seus relatos um dia se tornariam públicos,  não hesitou em expor, inclusive, suas próprias e recorrentes infidelidades matrimoniais. Confessou pequenas fraquezas e vaidades, em meio a passagens pitorescas, cômicas, emocionantes ou francamente obscenas. Entre estas incluem-se desde o incêndio de Londres a pequenos incidentes da vida cotidiana, dos salões e camarotes de teatro aos cafés populares e bordéis do porto.

Para que fosse transformado em livro, cerca de duzentos anos após a sua morte, foram expurgados trechos e mais trechos do que escreveu, a bem da decência, tamanhos eram os casos escabrosos descritos e tão escrachada e obscena era a linguagem empregada. Do que escapou desse expurgo, é possível traçar o perfil de Pepsys, homem tipicamente do povo, cheio de vícios e paupérrimo em virtudes, mas inteligentíssimo, conhecedor de várias línguas, como o francês, o espanhol e o latim, entre outras. Por exemplo, é revelado nas entrelinhas  que se tratava de um homem que detestava esportes e adorava tocar viola e flautim. Amava, à sua maneira, a esposa, mas lhe era sumamente infiel e várias vezes por semana. Era um sujeito de maus modos, embora freqüentador assíduo da corte do rei Carlos II, desses que à mesa comiam carnes com as mãos e arrotava quando lhe dava na veneta.

Pepys era do tipo no qual não se podia confiar. Não titubeava, por exemplo, em dormir com as esposas dos amigos, caso houvesse a menor oportunidade para tal. Era enfatuado e vaidoso, tanto que se considerava de classe alta (embora sendo plebeu). Era mesquinho a ponto de não se dispor a gastar algumas míseras libras nem mesmo para comprar um vestido para a esposa. Não relutava em esbofetear a mulher quando contrariado e muito menos espancar a empregada quando esta, eventualmente, apenas deixava de fechar uma porta que ele tinha ordenado. Tudo isso, e muito mais,  ele relata (ou confessa) em seus diários. Fica, como seria de se esperar, a impressão de que se tratava de um indivíduo sem escrúpulos, sem moral e sem virtudes, em meio a uma sociedade perfeita. Certo? Errado!

Pepys era somente o protótipo, a cópia exata do inglês médio, que num passado nem tão remoto, no século XVII, era rústico, pouco educado e sem os modos refinados que achamos que tinha. O governo de Carlos II era dos piores da Europa, sumamente perdulário e de uma incompetência gritante. O rei equilibrava os cofres públicos, invariavelmente saqueados, com sucessivos aumentos de impostos, o que o tornava odioso e impopular. Mas... ele não dava a mínima a isso. A economia inglesa, durante o reinado de Carlos II, ia de mal a pior. Os diários de Pepys registram, pois, de forma nua e crua, sem disfarces e sem retoques, os vícios do seu tempo. São, também, um exame de consciência pessoal. Nele não poupa os políticos cínicos e oportunistas. Mas são também confissões das suas aventuras amorosas. Claro que ele não teria coragem, como não teve, de escrever o que escreveu de forma que qualquer pessoa entendesse. Para evitar que isso acontecesse, recorreu a um sistema de escrita recém-inventado, em 1620, por um obscuro professor inglês, um tal de Shelton, que pouquíssimos conheciam.

Para não me estender mais no assunto, transcrevo alguns trechos esparsos dos Diários de Pepys sobre a peste que devastava a cidade, como estes: “(...) Ontem foi o dia mais quente que já vi em minha vida (...) Hoje, para meu pesar, vi, em Drury Lane, duas ou três casas com uma cruz vermelha na porta e com a inscrição: ‘Que Deus tenha piedade de nós’. Triste espetáculo. Nunca vi, em minha vida, nenhum outro parecido (...) O pátio estava cheio de carros e de pessoas que se preparavam para fugir de Londres. Nesta parte da cidade, a peste ganha terreno a cada dia. O boletim de mortalidade já chega a 267 mortos, noventa a mais do que na véspera. Só soube de quatro mortes na City (...)”. E Pepys segue relatando, dia a dia, a evolução da epidemia, entremeando esses relatos com as cruas e até escatológicas descrições de suas aventuras extraconjugais, além de fofocas de pessoas às quais jurava amizade, mas que não poupava em seus implacáveis registros.


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