Implacável registro da
vida londrina do século XVII
Pedro
J. Bondaczuk
O relato feito pelo
inglês Samuel Pepys da epidemia de peste bubônica que arrasou Londres em 1666 e
1667, e do incêndio que atingiu a capital do Império em setembro de 1667 (que
não só contribuiu, como virtualmente eliminou a expansão e continuidade desse
flagelo que, se não fosse o fogo, provavelmente duraria muito mais tempo), é um
dos mais detalhados, verossímeis e completos que se conhece. O autor desses
registros, todavia, sequer era escritor. E, pelo que se sabe dele, jamais teve
essa pretensão. Aliás, nunca lhe passou, nem mesmo remotamente, pela cabeça que
seus diários pessoais – um calhamaço de seis grossos volumes, com mais de três
mil páginas de texto, em letra miudinha – fossem transformados em livro. Mas
foram. E constituem, provavelmente, o melhor relato de todos os tempos não só desse
caso específico de Londres, mas de todas as epidemias que já assolaram a
humanidade desde o surgimento do homem.
A convicção de que
Samuel Pepys fez esses registros como uma espécie de desabafo pessoal
(personalíssimo) super íntimo e hiper secreto sobre o que pensava e fazia é seu
próprio teor. São revelações do tipo que não se fazem nem para a pessoa na qual
se tenha irrestrita e a mais absoluta confiança e que se deseja, portanto, que
permaneçam secretas. Tanto isso é verdade que o diário, escrito durante nove
anos, iniciado quando o autor tinha vinte e sete anos de idade, foi todo
redigido de forma taquigráfica (escrita que demandou anos para ser compreendida
e transcrita na língua corrente utilizada no cotidiano). Nele, Pepys não se
limitou a relatar fatos. Traçou um grande painel da vida inglesa do seu tempo,
em linguagem nua e crua, repleta, inclusive, de palavrões, retratando
principalmente a alta burguesia. Muito sincero, sinceridade esta que
provavelmente não teria caso sequer desconfiasse que seus relatos um dia se
tornariam públicos, não hesitou em
expor, inclusive, suas próprias e recorrentes infidelidades matrimoniais.
Confessou pequenas fraquezas e vaidades, em meio a passagens pitorescas,
cômicas, emocionantes ou francamente obscenas. Entre estas incluem-se desde o
incêndio de Londres a pequenos incidentes da vida cotidiana, dos salões e
camarotes de teatro aos cafés populares e bordéis do porto.
Para que fosse
transformado em livro, cerca de duzentos anos após a sua morte, foram expurgados
trechos e mais trechos do que escreveu, a bem da decência, tamanhos eram os
casos escabrosos descritos e tão escrachada e obscena era a linguagem
empregada. Do que escapou desse expurgo, é possível traçar o perfil de Pepsys,
homem tipicamente do povo, cheio de vícios e paupérrimo em virtudes, mas
inteligentíssimo, conhecedor de várias línguas, como o francês, o espanhol e o
latim, entre outras. Por exemplo, é revelado nas entrelinhas que se tratava de um homem que detestava
esportes e adorava tocar viola e flautim. Amava, à sua maneira, a esposa, mas
lhe era sumamente infiel e várias vezes por semana. Era um sujeito de maus
modos, embora freqüentador assíduo da corte do rei Carlos II, desses que à mesa
comiam carnes com as mãos e arrotava quando lhe dava na veneta.
Pepys era do tipo no
qual não se podia confiar. Não titubeava, por exemplo, em dormir com as esposas
dos amigos, caso houvesse a menor oportunidade para tal. Era enfatuado e
vaidoso, tanto que se considerava de classe alta (embora sendo plebeu). Era
mesquinho a ponto de não se dispor a gastar algumas míseras libras nem mesmo
para comprar um vestido para a esposa. Não relutava em esbofetear a mulher
quando contrariado e muito menos espancar a empregada quando esta,
eventualmente, apenas deixava de fechar uma porta que ele tinha ordenado. Tudo
isso, e muito mais, ele relata (ou
confessa) em seus diários. Fica, como seria de se esperar, a impressão de que
se tratava de um indivíduo sem escrúpulos, sem moral e sem virtudes, em meio a
uma sociedade perfeita. Certo? Errado!
Pepys era somente o
protótipo, a cópia exata do inglês médio, que num passado nem tão remoto, no
século XVII, era rústico, pouco educado e sem os modos refinados que achamos
que tinha. O governo de Carlos II era dos piores da Europa, sumamente
perdulário e de uma incompetência gritante. O rei equilibrava os cofres
públicos, invariavelmente saqueados, com sucessivos aumentos de impostos, o que
o tornava odioso e impopular. Mas... ele não dava a mínima a isso. A economia
inglesa, durante o reinado de Carlos II, ia de mal a pior. Os diários de Pepys
registram, pois, de forma nua e crua, sem disfarces e sem retoques, os vícios
do seu tempo. São, também, um exame de consciência pessoal. Nele não poupa os
políticos cínicos e oportunistas. Mas são também confissões das suas aventuras
amorosas. Claro que ele não teria coragem, como não teve, de escrever o que
escreveu de forma que qualquer pessoa entendesse. Para evitar que isso
acontecesse, recorreu a um sistema de escrita recém-inventado, em 1620, por um
obscuro professor inglês, um tal de Shelton, que pouquíssimos conheciam.
Para não me estender
mais no assunto, transcrevo alguns trechos esparsos dos Diários de Pepys sobre
a peste que devastava a cidade, como estes: “(...) Ontem foi o dia mais quente
que já vi em minha vida (...) Hoje, para meu pesar, vi, em Drury Lane, duas ou
três casas com uma cruz vermelha na porta e com a inscrição: ‘Que Deus tenha
piedade de nós’. Triste espetáculo. Nunca vi, em minha vida, nenhum outro
parecido (...) O pátio estava cheio de carros e de pessoas que se preparavam
para fugir de Londres. Nesta parte da cidade, a peste ganha terreno a cada dia.
O boletim de mortalidade já chega a 267 mortos, noventa a mais do que na
véspera. Só soube de quatro mortes na City (...)”. E Pepys segue relatando, dia
a dia, a evolução da epidemia, entremeando esses relatos com as cruas e até
escatológicas descrições de suas aventuras extraconjugais, além de fofocas de
pessoas às quais jurava amizade, mas que não poupava em seus implacáveis
registros.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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