Manzoni enfatiza a
solidariedade em meio a tragédias
Pedro
J. Bondaczuk
A descrição feita por
Alessandro Manzoni, no romance “Os noivos”, dos efeitos do que se convencionou
chamar de “A Grande Peste de Milão”, que devastou, entre 1621 e 1639, todo o
Norte da atual Itália, matando um número estimado em meio milhão de pessoas (há
quem garanta que foi muito mais), prima pelo aspecto humano. Enfatiza,
sobretudo, a solidariedade que, salvo exceções, se manifesta em meio a
tragédias. Embora o escritor fosse membro da aristocracia rural da Lombardia,
seu olhar volta-se, com especial destaque, para o sofrimento dos pobres, dos
desvalidos, dos camponeses miseráveis e entregues à própria sorte, que, não
raro, não tinham sequer o que comer. É um relato pungente, chocante, em forma,
praticamente, de denúncia (posto que velada) ao que dá entender que se tratava
de absurda injustiça social.
Destaque-se que Manzoni
tinha “pedigree” intelectual. Além de receber educação das mais esmeradas, era
neto (por parte da mãe) de ninguém menos que o filósofo e jurista milanês
Cesare Beccaria, considerado o principal expoente do Iluminismo Penal, que
praticamente mudou o conceito de Justiça com seu clássico “Dos delitos e das
penas”, livro que tive a oportunidade de ler em 1977, quando estudante da
Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Qualquer aluno do curso de
Direito, estude onde estudar, conhece essa obra, fundamental no estudo das
ciências jurídicas. Certamente Manzoni absorveu preciosos ensinamentos do seu
ilustre avô.
Separei, para
transcrever neste espaço, um trecho da pungente descrição do romancista do
lazareto de Milão, no auge da epidemia de peste bubônica, onde os noivos, Renzo
e Lúcia, que haviam sido separados no exato dia em que deveriam se casar,
finalmente se reencontram. Sem dúvida, não era um local, digamos, bucólico e
inspirador para esse tão batalhado reencontro. O texto de que me utilizo é o da
edição espanhola do livro, que traduzo um tanto livremente. Manzoni relata, em
determinado trecho: “(...) Viam-se sentadas, em várias partes, enfermeiras com
crianças achegadas ao peito; algumas delas manifestavam tamanhas mostras de
carinho que deixavam dúvidas, aos que as viam, se elas haviam sido atraídas
àquele lugar pela expectativa de remuneração ou se por essa caridade
espontânea, que vai em busca dos necessitados e dos que sofrem (...)”.
Manzoni tanto mostra
comoção com o sofrimento das crianças, as maiores vítimas de um flagelo como
aquele (e, ademais, de qualquer outro, convenhamos, ainda mais quando atingem
famílias miseráveis), quanto com as generosas pessoas que tentavam cuidar
delas. E prossegue, em seu relato: “(...) Uma das citadas enfermeiras,
extremamente aflita, desprendia, de seu seio, uma criatura que chorava com
força e buscava, tristemente, o animal (cabra) que a substituísse no ato de
alimentar a criança faminta. Outra, contemplava, satisfeita, o pequeno que
dormia com o bico de seu seio na boca e beijando-o, docemente, caminhava em
direção a uma cabana para acomodá-lo em um colchãozinho. Mas uma terceira,
abandonando o peito a uma criatura estranha, com certo ar, não de negligência,
mas de preocupação, olhava fixamente para o céu. O que essa enfermeira pensava,
naquele instante, naquela atitude, com aquele olhar para um outro menino que
não o filho nascido de suas entranhas, que talvez, pouco antes, havia chupado
aquele seio e que, também por acaso, havia exalado sobre ele seu último
suspiro? (...)”.
Imaginem o que poderia
passar pela cabeça de alguma mulher numa situação como essa! Certamente dor,
frustração, revolta e uma gama de sentimentos indescritíveis, que em tais
momentos pessoas que vivem dramas como esse têm, tentando, sobretudo, entender
o que lhes seja incompreensível. Manzoni prossegue, mais adiante, sua
descrição: “(...) Outras mulheres, de idades mais avançadas, estavam empenhadas
em executar outras tarefas. Uma acudia aos gritos de um menino faminto.
Tomava-o nos braços e levava-o perto de uma cabra, que pastava em meio de uma
touceira de grama fresca, aproximando sua boca da teta do animal ao qual
tentava acalmar, acariciando-o, ao mesmo tempo em que executava, com doçura,
esse serviço. Outra mulher corria, apressada, para atender a um pobrezinho,
pisoteado por uma cabra, enquanto procurava dar de mamar a outra criança
(...)”..
Dessa dramática
descrição, fica, em nosso espírito, a indagação: qual desses sofrimentos era o
mais agudo, a fome dos bebês, que acabavam de ficar órfãos, ou a morte de suas
mães, ceifadas, de forma implacável, pela insensível peste? Claro que ambos.
Mas... Manzoni enfatiza a piedade, a abnegação e a solidariedade das
enfermeiras que, arriscando suas vidas, acudiam aqueles pequenos seres
desamparados. Não, não podia ser por dinheiro. Ou não apenas por ele. E o
escritor prossegue: “(...) Uma das enfermeiras levava uma criança, de um lado
para outro, acalentando-a, tentando fazê-la dormir por meio de cantos, quase
que murmurados e sossegando-a com palavras carinhosas. chamando-a por um belo
nome que ela mesma havia inventado. De
repente, surgiu um capuchinho, de barbas branquíssimas, levando dois bebês nos
braços, que choravam incontrolavelmente, e que ele havia acabado de tirar do
colo das respectivas mães, que haviam expirado momentos antes. Uma das mulheres
presentes se apressou em receber os recém-nascidos. Depois, observou
atentamente ao redor, as enfermeiras e as cabras, à procura de alguém que se
dispusesse a substituir as mães mortas das duas crianças (...)”.
Não por acaso, “Os
noivos” é um clássico da Literatura mundial. Concordo plenamente com a opinião
do jornalista Luís M. Faria sobre esse livro, publicada na revista “Expresso”:
“(…) O tema é universal: uma história de amor entre dois jovens humildes que
desafia as circunstâncias. Por outro lado, há cenas emocionantes e um elenco de
personagens quase perfeitas na sua vitalidade, desde camponeses e clérigos a
nobres, monjas, tiranos e bandidos. Com graus variáveis de complexidade
psicológica, proporcionam flashes da natureza humana onde não é raro encontrar
sabedoria. (…) A voz do autor vai-nos falando num tom calmo de contador que
sugere como esta obra merece ser lida”. E merece de fato, e muito, estejam
certos.
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