Monday, May 16, 2016

Manzoni enfatiza a solidariedade em meio a tragédias

Pedro J. Bondaczuk

A descrição feita por Alessandro Manzoni, no romance “Os noivos”, dos efeitos do que se convencionou chamar de “A Grande Peste de Milão”, que devastou, entre 1621 e 1639, todo o Norte da atual Itália, matando um número estimado em meio milhão de pessoas (há quem garanta que foi muito mais), prima pelo aspecto humano. Enfatiza, sobretudo, a solidariedade que, salvo exceções, se manifesta em meio a tragédias. Embora o escritor fosse membro da aristocracia rural da Lombardia, seu olhar volta-se, com especial destaque, para o sofrimento dos pobres, dos desvalidos, dos camponeses miseráveis e entregues à própria sorte, que, não raro, não tinham sequer o que comer. É um relato pungente, chocante, em forma, praticamente, de denúncia (posto que velada) ao que dá entender que se tratava de absurda injustiça social.

Destaque-se que Manzoni tinha “pedigree” intelectual. Além de receber educação das mais esmeradas, era neto (por parte da mãe) de ninguém menos que o filósofo e jurista milanês Cesare Beccaria, considerado o principal expoente do Iluminismo Penal, que praticamente mudou o conceito de Justiça com seu clássico “Dos delitos e das penas”, livro que tive a oportunidade de ler em 1977, quando estudante da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Qualquer aluno do curso de Direito, estude onde estudar, conhece essa obra, fundamental no estudo das ciências jurídicas. Certamente Manzoni absorveu preciosos ensinamentos do seu ilustre avô.

Separei, para transcrever neste espaço, um trecho da pungente descrição do romancista do lazareto de Milão, no auge da epidemia de peste bubônica, onde os noivos, Renzo e Lúcia, que haviam sido separados no exato dia em que deveriam se casar, finalmente se reencontram. Sem dúvida, não era um local, digamos, bucólico e inspirador para esse tão batalhado reencontro. O texto de que me utilizo é o da edição espanhola do livro, que traduzo um tanto livremente. Manzoni relata, em determinado trecho: “(...) Viam-se sentadas, em várias partes, enfermeiras com crianças achegadas ao peito; algumas delas manifestavam tamanhas mostras de carinho que deixavam dúvidas, aos que as viam, se elas haviam sido atraídas àquele lugar pela expectativa de remuneração ou se por essa caridade espontânea, que vai em busca dos necessitados e dos que sofrem (...)”.

Manzoni tanto mostra comoção com o sofrimento das crianças, as maiores vítimas de um flagelo como aquele (e, ademais, de qualquer outro, convenhamos, ainda mais quando atingem famílias miseráveis), quanto com as generosas pessoas que tentavam cuidar delas. E prossegue, em seu relato: “(...) Uma das citadas enfermeiras, extremamente aflita, desprendia, de seu seio, uma criatura que chorava com força e buscava, tristemente, o animal (cabra) que a substituísse no ato de alimentar a criança faminta. Outra, contemplava, satisfeita, o pequeno que dormia com o bico de seu seio na boca e beijando-o, docemente, caminhava em direção a uma cabana para acomodá-lo em um colchãozinho. Mas uma terceira, abandonando o peito a uma criatura estranha, com certo ar, não de negligência, mas de preocupação, olhava fixamente para o céu. O que essa enfermeira pensava, naquele instante, naquela atitude, com aquele olhar para um outro menino que não o filho nascido de suas entranhas, que talvez, pouco antes, havia chupado aquele seio e que, também por acaso, havia exalado sobre ele seu último suspiro? (...)”.

Imaginem o que poderia passar pela cabeça de alguma mulher numa situação como essa! Certamente dor, frustração, revolta e uma gama de sentimentos indescritíveis, que em tais momentos pessoas que vivem dramas como esse têm, tentando, sobretudo, entender o que lhes seja incompreensível. Manzoni prossegue, mais adiante, sua descrição: “(...) Outras mulheres, de idades mais avançadas, estavam empenhadas em executar outras tarefas. Uma acudia aos gritos de um menino faminto. Tomava-o nos braços e levava-o perto de uma cabra, que pastava em meio de uma touceira de grama fresca, aproximando sua boca da teta do animal ao qual tentava acalmar, acariciando-o, ao mesmo tempo em que executava, com doçura, esse serviço. Outra mulher corria, apressada, para atender a um pobrezinho, pisoteado por uma cabra, enquanto procurava dar de mamar a outra criança (...)”..

Dessa dramática descrição, fica, em nosso espírito, a indagação: qual desses sofrimentos era o mais agudo, a fome dos bebês, que acabavam de ficar órfãos, ou a morte de suas mães, ceifadas, de forma implacável, pela insensível peste? Claro que ambos. Mas... Manzoni enfatiza a piedade, a abnegação e a solidariedade das enfermeiras que, arriscando suas vidas, acudiam aqueles pequenos seres desamparados. Não, não podia ser por dinheiro. Ou não apenas por ele. E o escritor prossegue: “(...) Uma das enfermeiras levava uma criança, de um lado para outro, acalentando-a, tentando fazê-la dormir por meio de cantos, quase que murmurados e sossegando-a com palavras carinhosas. chamando-a por um belo nome que ela mesma havia inventado.  De repente, surgiu um capuchinho, de barbas branquíssimas, levando dois bebês nos braços, que choravam incontrolavelmente, e que ele havia acabado de tirar do colo das respectivas mães, que haviam expirado momentos antes. Uma das mulheres presentes se apressou em receber os recém-nascidos. Depois, observou atentamente ao redor, as enfermeiras e as cabras, à procura de alguém que se dispusesse a substituir as mães mortas das duas crianças (...)”.

Não por acaso, “Os noivos” é um clássico da Literatura mundial. Concordo plenamente com a opinião do jornalista Luís M. Faria sobre esse livro, publicada na revista “Expresso”: “(…) O tema é universal: uma história de amor entre dois jovens humildes que desafia as circunstâncias. Por outro lado, há cenas emocionantes e um elenco de personagens quase perfeitas na sua vitalidade, desde camponeses e clérigos a nobres, monjas, tiranos e bandidos. Com graus variáveis de complexidade psicológica, proporcionam flashes da natureza humana onde não é raro encontrar sabedoria. (…) A voz do autor vai-nos falando num tom calmo de contador que sugere como esta obra merece ser lida”. E merece de fato, e muito, estejam certos.


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