Tuesday, May 31, 2016

Legítima precursora da ficção científica

Pedro J. Bondaczuk

A escritora inglesa Mary Shelley foi, de fato e de direito, a pioneira, a fundadora, a lídima precursora do gênero literário (hoje muito popular por causa da adaptação dos principais livros para o cinema) conhecido como ficção científica. Raras vezes tenho visto esse reconhecimento. E, mesmo quando ele se dá, vem sempre acompanhado de algum “mas”, quando não de uma série de restrições que considero incabíveis e até absurdas. Por que isso acontece? Tenho convicção que se trate do velho (do enfaticamente negado, mas persistente e cristalizado no comportamento até mesmo de muitas mulheres) preconceito de gênero. Raciocinassem com um tantinho só de lógica e esses preconceituosos concluiriam com facilidade que competência, criatividade e talento (literário ou qualquer outro) nada têm a ver com sexo. Aliás, essa mentalidade machista, teimosamente arraigada na mente de tanta gente, a de pretensa superioridade masculina, é carente de qualquer fundamento.

O livro “Frankenstein: o Prometeu moderno”, interpretado por muitos (presumo que pela maioria) como romance de terror, não é nada disso. É, de fato e de direito, o precursor, a “pedra fundamental” da ficção científica. Tem a ver com as experiências do filósofo natural e poeta do século XVIII Erasmus Darwin (não confundir com o criador da Teoria da Evolução, Charles Darwin), por cujas idéias Mary Shelley era fascinada. Esse médico inglês afirmava, entre outras coisas, que em suas experiências com cadáveres, havia conseguido a façanha de ter animado matéria morta. Outro cientista que encantava a então jovem “projeto de escritora”, era o italiano Luigi Galvani. Esse pesquisador, físico e filósofo bolonhês havia realizado, alguns anos antes, estudos de bioeletricidade, ou seja, dos padrões elétricos e dos sinais do sistema nervoso humano.

 Mary Shelley explica como teve a idéia para escrever sua história, escrita no princípio um conto curto, que posteriormente ela ampliou para resultar na obra que conhecemos. “Eu vi o pálido estudante de artes profanas ajoelhado ao lado da coisa que ele tinha reunido. Eu vi o fantasma hediondo de um homem estendido e, em seguida, através do funcionamento de alguma força, mostrar sinais de vida, e se mexer com um espasmo vital. Terrível, extremamente assustador seria o efeito de qualquer esforço humano na simulação do estupendo mecanismo de Criador do mundo”.

Frankenstein, para quem não sabe, não é o nome dessa espécie de “clone” (podemos assim chamar), formado com pedaços de cadáveres, animado por uma corrente elétrica. É o de seu criador. Ou seja, é o de Victor Frankenstein. A criatura, antes de ser apelidada com o sobrenome de quem a criou, era conhecida como “Adam” (em referência ao bíblico Adão). E a qualificação que o autor dessa façanha recebeu, de “Prometeu moderno”, foi em alusão ao titã da mitologia grega que roubou o fogo sagrado de Héstia para dá-lo aos mortais e que, por isso, foi castigado. Foi amarrado, eternamente, a uma rocha, enquanto todo dia uma gigantesca águia comia seu fígado, que se regenerava, para ser comido de novo, de novo e de novo...

O livro “O último homem” também é, nítida e claramente, de ficção científica. Só que ao invés de tratar de miraculosos avanços científicos, como fez mo “Frankenstein”, Mary Shelley explorou o contrário. Seu enredo sugere que, em fins do século XXI, a Medicina teria parado de evoluir. Muito pelo contrário, tornara-se demasiadamente tímida, na verdade ultrapassada, a ponto de não saber o que fazer para deter incontrolável pandemia de peste bubônica que dizima a humanidade. Todavia, as obras de ficção científica de Mary Shelley não se limitam a esses dois livros, os mais conhecidos que publicou. Posso citar, por exemplo, o conto “Roger Dodsworth: o inglês reanimado”, publicado originalmente em um jornal londrino em 1826, o mesmo ano da publicação de “O último homem”.Trata-se da narrativa sobre um homem nascido em 1629, soterrado em uma avalanche em 1660, mas trazido de novo à vida 166 anos depois.

Outra história de ficção científica é “O mortal imortal” – que dá título ao livro de contos em que “Roger Dodsworth: o inglês reanimado” está incluído – datada de 1833. Trata-se do relato de “Winzi”, no dia de seu 323º aniversário. Esse personagem tomou uma substância misteriosa, preparada pelo alquimista alemão Cornelius Agrippa, enquanto trabalhava como seu assistente. Essa poção tornou-o imortal. Detalhe: o pesquisador citado de fato existiu. Cornelius Agrippa (que viveu entre 1486 e 1535), foi interessado em magia, alquimia, astrologia e tudo o que se referisse a esoterismo.

Mary trata do mesmo tema de “Roger Dodsworth” no conto "Valério: o romano reanimado". Nele, o personagem do título, cavaleiro do tempo de Cícero e de Catão, é despertado numa outra época, que não a sua. Confuso, tenta compreender as mudanças da civilização e da própria matéria que faz os homens. E Mary escreve: " (...) Mas a tentativa humana de descrever falha ante a tremenda mudança que se deu no mundo, é verdade, durante a lenta passagem de muitas eras (...)" Existe, como destaca, uma impossibilidade na compreensão do mundo quando se tem uma visão relativista das épocas.


Em outro conto, com idêntica temática, a escritora reflete sobre a força da natureza do indivíduo que, apesar de toda a conjuntura do meio e do tempo, é a verdadeira origem do caráter. Escreve: " (...) Porque, apesar da educação e das circunstâncias poderem ser suficientes para dirigir e formar o material irregular da mente, elas não podem, nem criar, nem fornecer intelecto, aspirações nobres e energia constante onde a inércia, a hesitação nos propósitos e os desejos vis foram cunhados pela natureza (...)" Mary Shelley, em parte, foi culpada de não ter seus reais méritos literários devidamente reconhecidos. Embora sem parar de produzir, dedicou quase metade da sua vida à preservação da obra e da memória do marido, o poeta Percy Bysshe Shelley, que havia morrido em um naufrágio na Itália, em detrimento da própria produção literária. Mas o fato é que ela foi, de fato e de direito, a verdadeira, a lídima, a legítima precursora da ficção científica na literatura mundial.

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