Legítima precursora da
ficção científica
Pedro
J. Bondaczuk
A escritora inglesa
Mary Shelley foi, de fato e de direito, a pioneira, a fundadora, a lídima
precursora do gênero literário (hoje muito popular por causa da adaptação dos
principais livros para o cinema) conhecido como ficção científica. Raras vezes
tenho visto esse reconhecimento. E, mesmo quando ele se dá, vem sempre
acompanhado de algum “mas”, quando não de uma série de restrições que considero
incabíveis e até absurdas. Por que isso acontece? Tenho convicção que se trate
do velho (do enfaticamente negado, mas persistente e cristalizado no
comportamento até mesmo de muitas mulheres) preconceito de gênero.
Raciocinassem com um tantinho só de lógica e esses preconceituosos concluiriam
com facilidade que competência, criatividade e talento (literário ou qualquer
outro) nada têm a ver com sexo. Aliás, essa mentalidade machista, teimosamente
arraigada na mente de tanta gente, a de pretensa superioridade masculina, é
carente de qualquer fundamento.
O livro “Frankenstein:
o Prometeu moderno”, interpretado por muitos (presumo que pela maioria) como
romance de terror, não é nada disso. É, de fato e de direito, o precursor, a
“pedra fundamental” da ficção científica. Tem a ver com as experiências do
filósofo natural e poeta do século XVIII Erasmus Darwin (não confundir com o
criador da Teoria da Evolução, Charles Darwin), por cujas idéias Mary Shelley
era fascinada. Esse médico inglês afirmava, entre outras coisas, que em suas
experiências com cadáveres, havia conseguido a façanha de ter animado matéria
morta. Outro cientista que encantava a então jovem “projeto de escritora”, era
o italiano Luigi Galvani. Esse pesquisador, físico e filósofo bolonhês havia
realizado, alguns anos antes, estudos de bioeletricidade, ou seja, dos padrões
elétricos e dos sinais do sistema nervoso humano.
Mary Shelley explica como teve a idéia para
escrever sua história, escrita no princípio um conto curto, que posteriormente
ela ampliou para resultar na obra que conhecemos. “Eu vi o pálido estudante de
artes profanas ajoelhado ao lado da coisa que ele tinha reunido. Eu vi o
fantasma hediondo de um homem estendido e, em seguida, através do funcionamento
de alguma força, mostrar sinais de vida, e se mexer com um espasmo vital.
Terrível, extremamente assustador seria o efeito de qualquer esforço humano na
simulação do estupendo mecanismo de Criador do mundo”.
Frankenstein, para quem
não sabe, não é o nome dessa espécie de “clone” (podemos assim chamar), formado
com pedaços de cadáveres, animado por uma corrente elétrica. É o de seu
criador. Ou seja, é o de Victor Frankenstein. A criatura, antes de ser
apelidada com o sobrenome de quem a criou, era conhecida como “Adam” (em
referência ao bíblico Adão). E a qualificação que o autor dessa façanha
recebeu, de “Prometeu moderno”, foi em alusão ao titã da mitologia grega que
roubou o fogo sagrado de Héstia para dá-lo aos mortais e que, por isso, foi
castigado. Foi amarrado, eternamente, a uma rocha, enquanto todo dia uma
gigantesca águia comia seu fígado, que se regenerava, para ser comido de novo,
de novo e de novo...
O livro “O último
homem” também é, nítida e claramente, de ficção científica. Só que ao invés de
tratar de miraculosos avanços científicos, como fez mo “Frankenstein”, Mary
Shelley explorou o contrário. Seu enredo sugere que, em fins do século XXI, a
Medicina teria parado de evoluir. Muito pelo contrário, tornara-se
demasiadamente tímida, na verdade ultrapassada, a ponto de não saber o que
fazer para deter incontrolável pandemia de peste bubônica que dizima a
humanidade. Todavia, as obras de ficção científica de Mary Shelley não se
limitam a esses dois livros, os mais conhecidos que publicou. Posso citar, por
exemplo, o conto “Roger Dodsworth: o inglês reanimado”, publicado originalmente
em um jornal londrino em 1826, o mesmo ano da publicação de “O último
homem”.Trata-se da narrativa sobre um homem nascido em 1629, soterrado em uma
avalanche em 1660, mas trazido de novo à vida 166 anos depois.
Outra história de
ficção científica é “O mortal imortal” – que dá título ao livro de contos em
que “Roger Dodsworth: o inglês reanimado” está incluído – datada de 1833.
Trata-se do relato de “Winzi”, no dia de seu 323º aniversário. Esse personagem
tomou uma substância misteriosa, preparada pelo alquimista alemão Cornelius
Agrippa, enquanto trabalhava como seu assistente. Essa poção tornou-o imortal.
Detalhe: o pesquisador citado de fato existiu. Cornelius Agrippa (que viveu
entre 1486 e 1535), foi interessado em magia, alquimia, astrologia e tudo o que
se referisse a esoterismo.
Mary trata do mesmo
tema de “Roger Dodsworth” no conto "Valério: o romano reanimado".
Nele, o personagem do título, cavaleiro do tempo de Cícero e de Catão, é
despertado numa outra época, que não a sua. Confuso, tenta compreender as
mudanças da civilização e da própria matéria que faz os homens. E Mary escreve:
" (...) Mas a tentativa humana de descrever falha ante a tremenda mudança
que se deu no mundo, é verdade, durante a lenta passagem de muitas eras
(...)" Existe, como destaca, uma impossibilidade na compreensão do mundo
quando se tem uma visão relativista das épocas.
Em outro conto, com
idêntica temática, a escritora reflete sobre a força da natureza do indivíduo
que, apesar de toda a conjuntura do meio e do tempo, é a verdadeira origem do
caráter. Escreve: " (...) Porque, apesar da educação e das circunstâncias
poderem ser suficientes para dirigir e formar o material irregular da mente,
elas não podem, nem criar, nem fornecer intelecto, aspirações nobres e energia
constante onde a inércia, a hesitação nos propósitos e os desejos vis foram
cunhados pela natureza (...)" Mary Shelley, em parte, foi culpada de não
ter seus reais méritos literários devidamente reconhecidos. Embora sem parar de
produzir, dedicou quase metade da sua vida à preservação da obra e da memória
do marido, o poeta Percy Bysshe Shelley, que havia morrido em um naufrágio na
Itália, em detrimento da própria produção literária. Mas o fato é que ela foi,
de fato e de direito, a verdadeira, a lídima, a legítima precursora da ficção
científica na literatura mundial.
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