Sunday, May 22, 2016

Relato de epidemia com precisão e compaixão

Pedro J. Bondaczuk

O grande mérito do jornalista-escritor Daniel Defoe, sobretudo no livro “Um diário do ano da peste” (título da edição brasileira) é sua capacidade de sentir, e de transmitir compaixão pelos sofrimentos das vítimas da epidemia de 1665. É uma obra escrita não somente com o cérebro, ou seja, com a razão, mas também com sentimento, com sensibilidade à flor da pele, enfim, com emoção, embora utilizando linguagem sóbria, equilibrada, sem floreios ou excessos vocabulares, como se fora um cientista descrevendo algum fenômeno recém-descoberto. Supõe-se que as informações (precisas) que transmite sejam baseadas no diário do seu tio Henry. Não se trata de uma leitura amena. Muito pelo contrário. Trata-se de um livro intenso, que retrata o sofrimento de pessoas condenadas por um mal do qual, no seu tempo, se desconheciam por completo as causas, quanto mais a possível possibilidade de cura, mesmo que remota.

Nenhum historiador, por meticuloso, observador e bem documentado que fosse, conseguiu apresentar Londres e, acima de tudo, seus habitantes, com tamanha verdade e com tanta humanidade como Daniel Defoe fez. E o governo, as autoridades tanto centrais, quanto da cidade e, por extensão, a sociedade londrina em seu conjunto, o que faziam para enfrentar com um mínimo de racionalidade, tão radical crise? Nada!!! Pelo menos não adotavam providências sequer elementares e minimamente lógicas. Limitavam-se a isolar as áreas críticas em que se dava a manifestação da peste, mantendo os doentes praticamente em prisões domiciliares, entregues ao próprio destino, sem nenhum tipo de assistência, não raro nem mesmo das respectivas famílias, cujos membros fugiam de casa e até da cidade enquanto podiam, relegando os contaminados, condenados a morrer absolutamente sozinhos, no total abandono, com suas dores, medos e angústias. Faz tais relatos, porém, sem comentários à margem, sem longas e inúteis digressões, dessas recheadas de floreios  e sem moralismo, tão ao gosto dos escritores, do seu tempo e do nosso. Deixou o julgamento por conta somente do leitor.

Curiosamente, Daniel Defoe registra a grande quantidade de ratos na cidade, sem atinar, no entanto, nem de longe (como ademais ninguém atinava) que estes eram os transmissores da peste, por meio das pulgas que os parasitavam. Aliás, informa, em seu livro, que havia uma crença generalizada de que os cães e os gatos é que eram os principais transmissores da doença. E que as autoridades, acreditando se tratar de medida profilática inadiável, determinaram a eliminação de todos esses inocentes animais. Relata que 40 mil cachorros e 200 mil felinos foram mortos. O resultado, como seria de se esperar, foi catastrófico. Na ausência de seus “inimigos” naturais, os ratos proliferaram em quantidade espantosa, explosiva até, ainda mais levando-se em conta sua altíssima capacidade de reprodução.

O pavor que tomou conta de Londres foi tão grande, conforme a narrativa de Defoe, que até o “Colege of Surgeons” – o Colégio dos Cirurgiões, como era conhecida a Faculdade de Medicina londrina – abandonou a cidade e refugiou-se no interior do país, tamanho era o terror dos médicos diante da peste, e tão grande era sua sensação de impotência para combater o flagelo. Imaginem, então, o cidadão comum, que não sabia o que fazer para se prevenir e nem mesmo tinha para onde ir!!! A exemplo do que ocorreu com outras epidemias de peste bubônica, em épocas mais remotas e em outros países, a imensa maioria das pessoas atribuía o flagelo a “castigo divino”. E não importava a religião que a pessoa professasse. Medidas absolutamente inócuas eram adotadas, como, por exemplo, extremo cuidado com a água. Em vão!!! Não passava pela cabeça de ninguém que a causa do problema eram os ratos e, sobretudo, eram as pulgas que os parasitavam. E estes eram deixados em paz.

Claro que não adiantava nada a existência de fossos em redor dos castelos e nem dos muros altos cercando as mansões. E muito menos contavam as hierarquias sociais. A peste bubônica era “democrática”. Atingia nobres e plebeus, idosos e crianças, homens e mulheres. Os coveiros não davam conta de sepultar todos os mortos e um cheiro horrível, de carne em decomposição, pairava no ar. Proponho-me a trazer à baila, na sequência destes comentários, outros tantos relatos, de outros consagrados escritores, a propósito de tantas outras epidemias. E não somente de peste bubônica, mas do cólera, de tifo, de varíola, de febre amarela e vai por aí afora. Mas nenhum, rigorosamente nenhum é tão preciso, detalhado e competente como o feito por Daniel Defoe, neste seu magnífico “Um diário do ano da peste”, que, apesar de ser obra de ficção, traz o signo, a marca registrada do mais genuíno e realista jornalismo gonzo.


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