Relato de epidemia com
precisão e compaixão
Pedro
J. Bondaczuk
O grande mérito do
jornalista-escritor Daniel Defoe, sobretudo no livro “Um diário do ano da
peste” (título da edição brasileira) é sua capacidade de sentir, e de
transmitir compaixão pelos sofrimentos das vítimas da epidemia de 1665. É uma
obra escrita não somente com o cérebro, ou seja, com a razão, mas também com
sentimento, com sensibilidade à flor da pele, enfim, com emoção, embora
utilizando linguagem sóbria, equilibrada, sem floreios ou excessos vocabulares,
como se fora um cientista descrevendo algum fenômeno recém-descoberto. Supõe-se
que as informações (precisas) que transmite sejam baseadas no diário do seu tio
Henry. Não se trata de uma leitura amena. Muito pelo contrário. Trata-se de um
livro intenso, que retrata o sofrimento de pessoas condenadas por um mal do
qual, no seu tempo, se desconheciam por completo as causas, quanto mais a
possível possibilidade de cura, mesmo que remota.
Nenhum historiador, por
meticuloso, observador e bem documentado que fosse, conseguiu apresentar
Londres e, acima de tudo, seus habitantes, com tamanha verdade e com tanta
humanidade como Daniel Defoe fez. E o governo, as autoridades tanto centrais,
quanto da cidade e, por extensão, a sociedade londrina em seu conjunto, o que
faziam para enfrentar com um mínimo de racionalidade, tão radical crise?
Nada!!! Pelo menos não adotavam providências sequer elementares e minimamente
lógicas. Limitavam-se a isolar as áreas críticas em que se dava a manifestação
da peste, mantendo os doentes praticamente em prisões domiciliares, entregues
ao próprio destino, sem nenhum tipo de assistência, não raro nem mesmo das
respectivas famílias, cujos membros fugiam de casa e até da cidade enquanto
podiam, relegando os contaminados, condenados a morrer absolutamente sozinhos,
no total abandono, com suas dores, medos e angústias. Faz tais relatos, porém,
sem comentários à margem, sem longas e inúteis digressões, dessas recheadas de
floreios e sem moralismo, tão ao gosto
dos escritores, do seu tempo e do nosso. Deixou o julgamento por conta somente
do leitor.
Curiosamente, Daniel
Defoe registra a grande quantidade de ratos na cidade, sem atinar, no entanto,
nem de longe (como ademais ninguém atinava) que estes eram os transmissores da
peste, por meio das pulgas que os parasitavam. Aliás, informa, em seu livro,
que havia uma crença generalizada de que os cães e os gatos é que eram os
principais transmissores da doença. E que as autoridades, acreditando se tratar
de medida profilática inadiável, determinaram a eliminação de todos esses
inocentes animais. Relata que 40 mil cachorros e 200 mil felinos foram mortos.
O resultado, como seria de se esperar, foi catastrófico. Na ausência de seus
“inimigos” naturais, os ratos proliferaram em quantidade espantosa, explosiva
até, ainda mais levando-se em conta sua altíssima capacidade de reprodução.
O pavor que tomou conta
de Londres foi tão grande, conforme a narrativa de Defoe, que até o “Colege of
Surgeons” – o Colégio dos Cirurgiões, como era conhecida a Faculdade de
Medicina londrina – abandonou a cidade e refugiou-se no interior do país,
tamanho era o terror dos médicos diante da peste, e tão grande era sua sensação
de impotência para combater o flagelo. Imaginem, então, o cidadão comum, que
não sabia o que fazer para se prevenir e nem mesmo tinha para onde ir!!! A
exemplo do que ocorreu com outras epidemias de peste bubônica, em épocas mais
remotas e em outros países, a imensa maioria das pessoas atribuía o flagelo a
“castigo divino”. E não importava a religião que a pessoa professasse. Medidas
absolutamente inócuas eram adotadas, como, por exemplo, extremo cuidado com a
água. Em vão!!! Não passava pela cabeça de ninguém que a causa do problema eram
os ratos e, sobretudo, eram as pulgas que os parasitavam. E estes eram deixados
em paz.
Claro que não adiantava
nada a existência de fossos em redor dos castelos e nem dos muros altos
cercando as mansões. E muito menos contavam as hierarquias sociais. A peste
bubônica era “democrática”. Atingia nobres e plebeus, idosos e crianças, homens
e mulheres. Os coveiros não davam conta de sepultar todos os mortos e um cheiro
horrível, de carne em decomposição, pairava no ar. Proponho-me a trazer à
baila, na sequência destes comentários, outros tantos relatos, de outros
consagrados escritores, a propósito de tantas outras epidemias. E não somente
de peste bubônica, mas do cólera, de tifo, de varíola, de febre amarela e vai
por aí afora. Mas nenhum, rigorosamente nenhum é tão preciso, detalhado e
competente como o feito por Daniel Defoe, neste seu magnífico “Um diário do ano
da peste”, que, apesar de ser obra de ficção, traz o signo, a marca registrada
do mais genuíno e realista jornalismo gonzo.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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