Ignorância como aliada das epidemias
Pedro
J. Bondaczuk
A “ignorância”, em seu
sentido lato, ou seja, no de desconhecimento, foi, ao longo de milênios, entre
tantas outras causas, a maior aliada das várias epidemias que afetaram a
humanidade, levando-a, em muitas ocasiões, até à beira da extinção. Ainda hoje,
mesmo com os avanços tecnológicos em todos os campos de atividade, sobretudo no
do conhecimento e da informação, e mesmo com a propalada globalização, há
milhões de pessoas vivendo praticamente na Era da Pedra Lascada. E elas pagam
duríssimo tributo por isso. Imaginem há mil, dois mil e, claro, muito mais
anos!
A quase totalidade das
pessoas (havia raras exceções) não tinha a mais elementar noção de práticas de
higiene. Coisas como água tratada, coleta de lixo, tratamento de esgoto e
comportamento até muito mais elementar e hoje corriqueiro, como o simples ato
de lavar as mãos antes das refeições, não passavam, nem remotamente, pela
cabeça de ninguém. Desconhecia-se, claro, a existência de vírus e bactérias. E
as doenças, todas elas, eram atribuídas exclusivamente a “castigos divinos”.
Nessas circunstâncias, não há nenhum exagero em afirmar que a espécie humana
escapou por puro acaso da extinção.
Os sintomas das
principais doenças epidêmicas, das que eram mais mortais, como a peste
bubônica, a varíola, o cólera, a febre amarela etc.etc.etc. eram do
conhecimento geral e foram descritos até em detalhes por diversos escritores,
como atestam seus textos que sobreviveram ao tempo e ao esquecimento e chegaram
até nós. Muitos, os mais esclarecidos, tinham pelo menos noção intuitiva de
como se dava a contaminação, embora raros adotassem providências até primárias
para evitá-la. Outros, mais raros ainda, chegaram a “intuir” algumas práticas
de esterilização, embora sob ceticismo generalizado. Mas ninguém, rigorosamente
ninguém – e isso até a segunda metade do século XIX – sequer desconfiava da
existência de seres tão pequenos, microscópicos, invisíveis a olho nu e tão
mortíferos. Por isso, ninguém adotava nenhuma espécie de providência para
eliminá-los. Por que? Por pura ignorância.
Para complicar ainda
mais as coisas, as autoridades que comandavam as cidades não sabiam, ou não
podiam adotar medidas de emergência, nem mesmo as mais elementares, como, por
exemplo, o isolamento das pessoas doentes. Muitas por serem atingidas pelas
doenças e morrerem em conseqüência delas. Outras, por terem entes queridos
afetados e mortos. E outras tantas, por deixarem-se levar pelo puro instinto e
simplesmente abandonarem as cidades, fugindo, espavoridas, em pânico. Pudera!
Tinham convicção de que qualquer providência que viessem a adotar seria inútil
para livrar seus liderados desses “castigos divinos”. Deixavam as coisas por
conta do clero que, igualmente, só determinava às pessoas o que seus membros
entendiam ser a única solução eficaz para um mal que achavam ser espiritual:
rezas, procissões, promessas, jejuns, autoflagelações e todo o arsenal místico
que conheciam. Enquanto isso, vírus e bactérias seguiam agindo, em sua marcha
sinistra, matando mais e mais pessoas.
Cito três exemplos, de
três personalidades diferentes, que ilustram como as epidemias eram encaradas,
por exemplo, no século XIV. O trio, cada qual de atividade diferente e com sua
visão pessoal, comenta a pandemia de peste bubônica que dizimou a população da
Europa a partir de 1347. O monge franciscano, Michele Piazza, registrou, com
rara precisão, como se dava a contaminação das pessoas. Escreveu: "Devido
a uma infecção do hálito, que se espalhou em torno deles enquanto falavam, um
infectava o outro (...) e não só faziam morrer quem quer que falasse com eles,
como, também, quem quer que comprasse, tocasse ou tirasse alguma coisa que lhes
pertencesse (...)". Fosse um pouquinho mais atento à realidade e menos
apegado a dogmas, concluiria, facilmente, que essa forma de contágio não tinha
nada a ver com “castigo divino” como convictamente acreditava. Mas...
Já o médico e cirurgião
francês, Guy de Chauliac, recomendava medidas preventivas, algumas que poderiam
funcionar como forma de esterilização, outras tantas absolutamente inócuas.
Recomendou: "(...) Como autodefesa, não havia nada melhor que fugir da
região antes que ficasse infectada e tomar purgativos de pílulas de aloés,
diminuir o sangue pela flebotomia e purificar o ar pelo fogo, reconfortar o
coração com o sene e coisas perfumadas e abrandar os humores com terra da
Armênia, além de resistir à putrefação por meio de coisas ácidas (...)". É
impossível de se saber se, ou quantas pessoas conseguiram escapar incólumes da
peste adotando essas recomendações. A
fuga dos locais em que a doença estivesse instalada era a forma mais
corriqueira de espalhar a epidemia, porquanto muitos que fugiam, mesmo que num
primeiro momento não tivessem nenhum sintoma, já estavam irremediavelmente
contaminados e, certamente, contaminariam muitos outros.
Quanto à desorganização
social e política das cidades afetadas, quem descreve, com a precisão de um
repórter, é o notável escritor Giovanni Boccaccio em seu “Decamerão”. Ele
escreve a propósito: "Em meio a tanta aflição e a tanta miséria da nossa
cidade (Florença) a reverenda autoridade das leis, tanto divinas como humanas,
caía e dissolvia-se. Os ministros e executores das leis, assim como os outros
homens, estavam todos mortos, ou enfermos ou tinham perdido os seus familiares,
de modo que não podiam desempenhar função alguma. Por decorrência deste estado,
era lícito a todos fazer o que bem lhes agradasse (...)" Ou seja, era o
tal do “salve-se quem puder”. E, convenhamos, pouquíssimos podiam naquelas
circunstâncias.
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