Friday, May 06, 2016

Descoberta de um mestre na arte de narrar

Pedro J. Bondaczuk

O escritor francês, Marcel Schwob, até uns quatro anos, era completo desconhecido para mim. Sequer desconfiava que existia, quanto mais que havia legado uma obra extensa e de inegável qualidade literária à posteridade. Vim a saber dele por pura obra do acaso. Foi quando adquiri, em um sebo aqui de Campinas, onde resido, por puro impulso, influenciado, talvez, pelo título, um de seus livros, porém em espanhol. Não sei se alguma editora brasileira lançou-o em português. Presumo que não. Pelo menos, por mais que pesquisasse e procurasse, não o encontrei. Nem essa obra e nem outra qualquer. O livro que me levou à “descoberta” de Schwob foi “El rey de la máscara de oro”, que ele publicou em 1898. Encantei-me com os contos nele contidos e resolvi pesquisar para saber de quem se tratava.

Localizei várias referências sobre ele, com muitos dados biográficos, em uma das tantas enciclopédias que tenho em minha biblioteca. Aliás, encontrei em mais de uma, o que mostra que ele foi importante em seu tempo, a despeito da minha abissal ignorância (pelo menos a seu respeito). Marcel Schwob nasceu na cidadezinha francesa de Chaville, em uma família judia, em 23 de agosto de 1867. Além de escritor (poeta, contista e ensaísta), foi crítico literário e tradutor. Mesmo tendo vivido pouco (morreu em Paris aos 38 anos de idade, vítima de uma reles gripe mal curada que contraiu ao retornar de Samoa, na região do Pacífico, em 26 de fevereiro de 1905), produziu muito. Escreveu, e publicou, por volta de 40 livros. Como se vê, foi um escritor incansável.

Ao iniciar as pesquisas para esta série de comentários tratando de como a Literatura lidou com epidemias como temas, lembrei que li em “El rey de la máscara de oro” um conto de Schwob que se enquadrava no tema. Corri até a estante da minha biblioteca, abri o livro e lá está sua magistral peça literária tratando especificamente do assunto. Suas histórias, em certos momentos, têm a exatidão narrativa de um repórter. Em outras, mais parecem poemas em prosa, carregados de simbolismo. O conto em que Schwob trata, especificamente, de uma epidemia, tem o título (traduzido para o português) de “A peste”. Faz uma descrição da doença tão realista e precisa, que até parece que testemunhou a devastação que ela causa. Não testemunhou. Nem poderia.

O que me dá essa certeza? Muito simples. A epidemia de que o escritor francês trata ocorreu em Florença, mais de 500 anos antes dele ter nascido. Mas não foi a pandemia, aquela que varreu praticamente toda a Europa, a de 1347. Foi outra epidemia, ocorrida na mesmíssima cidade, mas quase trinta anos depois, em 1374. O conto a que me refiro é protagonizado por dois sinistros aventureiros, que dão a entender a todos que contraíram a peste bubônica, embora não mostrassem sinais dessa contaminação. Os personagens agiram assim para não serem molestados por ninguém e assim se livrarem de uma série de situações, digamos, desagradáveis. O que me deixou atônito, na verdade boquiaberto, foi a realista e verossímil descrição que Schwob fez da doença.

À certa altura, ele escreveu o seguinte (cuja tradução, um tanto livre, é minha): “ (...) A enfermidade chegava de repente e atacava em plena rua. Os olhos ardiam e tornavam-se avermelhados. A garganta ficava rouca. A barriga inchava. Depois, a boca e a língua enchiam-se de bolhas cheias de água irritante. A vítima ficava tomada por uma sede insaciável. Uma tosse seca agitava os doentes durante horas. Depois, os membros ficavam rígidos nas articulações. A pele ficava cheia de manchas vermelhas, inchadas, que alguns chamavam de bubões. Finalmente, os mortos tinham o rosto deformado e de extrema palidez, com feridas sangrentas e a boca aberta como um chifre (...)”. Arrepiante, não é mesmo? É uma descrição de um realismo digno de um Edgar Alan Poe, tão sombrio e tétrico como os do “pai do conto de terror”.

Mais adiante, Schwob escreve: “(...) As fontes públicas, quase esgotadas pelo calor, estavam rodeadas por homens desesperados e fracos, que tentavam enfiar a cabeça na água para se refrescar. Vários deles caíam nas fontes e eram retirados delas com ganchos, negros de lodo, e com o crânio rachado. Os cadáveres, enegrecidos, jaziam no meio das ruas, nos sulcos por onde passa, quando é época de chuva, a enxurrada. O cheiro era insuportável e sufocante. O medo era terrível (...)”. Pudera! Imagine-se, paciente leitor, num ambiente como o descrito. E a descrição de Marcel Schwob coincide com as de escritores que testemunharam a peste bubônica “in loco”, como o historiador Giovanni Villani e seu ilustre xará, o magnífico autor do “Decamerão”, Giovanni Boccaccio.

O escritor francês dedicou outros contos a algumas outras epidemias, mas “La peste” é o que mais me impressionou. Raras vezes vi tamanha objetividade nas descrições e tão cru, diria chocante (ou arrepiante?) realismo. Soube, mais tarde, que Marcel Schwob influenciou escritores notáveis como André Gide, William Faulkner, Jerzy Andrzejewski e Jorge Luís Borges. O contista argentino (meu “guru” literário), aliás, confessou que um livro do seu colega francês (“Vidas imaginárias”) serviu-lhe de modelo para escrever sua “História universal da infâmia”. E eu que não conhecia essa talento, que escreveu uma peça de teatro em parceria com Júlio Verne e que tinha como modelos o medieval poeta-bandido francês, François Villon, e Robert Louis Stevenson, autor de “O médico e o monstro”!!! Conhecê-lo, sem dúvida, foi preciosíssimo acréscimo à minha (ainda) incompleta cultura literária. Um dia ainda chego lá!!!!!


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