Descoberta de um mestre
na arte de narrar
Pedro
J. Bondaczuk
O escritor francês,
Marcel Schwob, até uns quatro anos, era completo desconhecido para mim. Sequer
desconfiava que existia, quanto mais que havia legado uma obra extensa e de
inegável qualidade literária à posteridade. Vim a saber dele por pura obra do
acaso. Foi quando adquiri, em um sebo aqui de Campinas, onde resido, por puro
impulso, influenciado, talvez, pelo título, um de seus livros, porém em
espanhol. Não sei se alguma editora brasileira lançou-o em português. Presumo
que não. Pelo menos, por mais que pesquisasse e procurasse, não o encontrei.
Nem essa obra e nem outra qualquer. O livro que me levou à “descoberta” de
Schwob foi “El rey de la máscara de oro”, que ele publicou em 1898. Encantei-me
com os contos nele contidos e resolvi pesquisar para saber de quem se tratava.
Localizei várias
referências sobre ele, com muitos dados biográficos, em uma das tantas
enciclopédias que tenho em minha biblioteca. Aliás, encontrei em mais de uma, o
que mostra que ele foi importante em seu tempo, a despeito da minha abissal
ignorância (pelo menos a seu respeito). Marcel Schwob nasceu na cidadezinha
francesa de Chaville, em uma família judia, em 23 de agosto de 1867. Além de
escritor (poeta, contista e ensaísta), foi crítico literário e tradutor. Mesmo
tendo vivido pouco (morreu em Paris aos 38 anos de idade, vítima de uma reles
gripe mal curada que contraiu ao retornar de Samoa, na região do Pacífico, em
26 de fevereiro de 1905), produziu muito. Escreveu, e publicou, por volta de 40
livros. Como se vê, foi um escritor incansável.
Ao iniciar as pesquisas
para esta série de comentários tratando de como a Literatura lidou com
epidemias como temas, lembrei que li em “El rey de la máscara de oro” um conto
de Schwob que se enquadrava no tema. Corri até a estante da minha biblioteca,
abri o livro e lá está sua magistral peça literária tratando especificamente do
assunto. Suas histórias, em certos momentos, têm a exatidão narrativa de um
repórter. Em outras, mais parecem poemas em prosa, carregados de simbolismo. O
conto em que Schwob trata, especificamente, de uma epidemia, tem o título
(traduzido para o português) de “A peste”. Faz uma descrição da doença tão
realista e precisa, que até parece que testemunhou a devastação que ela causa.
Não testemunhou. Nem poderia.
O que me dá essa
certeza? Muito simples. A epidemia de que o escritor francês trata ocorreu em
Florença, mais de 500 anos antes dele ter nascido. Mas não foi a pandemia,
aquela que varreu praticamente toda a Europa, a de 1347. Foi outra epidemia,
ocorrida na mesmíssima cidade, mas quase trinta anos depois, em 1374. O conto a
que me refiro é protagonizado por dois sinistros aventureiros, que dão a
entender a todos que contraíram a peste bubônica, embora não mostrassem sinais
dessa contaminação. Os personagens agiram assim para não serem molestados por
ninguém e assim se livrarem de uma série de situações, digamos, desagradáveis.
O que me deixou atônito, na verdade boquiaberto, foi a realista e verossímil
descrição que Schwob fez da doença.
À certa altura, ele
escreveu o seguinte (cuja tradução, um tanto livre, é minha): “ (...) A
enfermidade chegava de repente e atacava em plena rua. Os olhos ardiam e
tornavam-se avermelhados. A garganta ficava rouca. A barriga inchava. Depois, a
boca e a língua enchiam-se de bolhas cheias de água irritante. A vítima ficava
tomada por uma sede insaciável. Uma tosse seca agitava os doentes durante
horas. Depois, os membros ficavam rígidos nas articulações. A pele ficava cheia
de manchas vermelhas, inchadas, que alguns chamavam de bubões. Finalmente, os
mortos tinham o rosto deformado e de extrema palidez, com feridas sangrentas e
a boca aberta como um chifre (...)”. Arrepiante, não é mesmo? É uma descrição
de um realismo digno de um Edgar Alan Poe, tão sombrio e tétrico como os do
“pai do conto de terror”.
Mais adiante, Schwob
escreve: “(...) As fontes públicas, quase esgotadas pelo calor, estavam
rodeadas por homens desesperados e fracos, que tentavam enfiar a cabeça na água
para se refrescar. Vários deles caíam nas fontes e eram retirados delas com
ganchos, negros de lodo, e com o crânio rachado. Os cadáveres, enegrecidos,
jaziam no meio das ruas, nos sulcos por onde passa, quando é época de chuva, a
enxurrada. O cheiro era insuportável e sufocante. O medo era terrível (...)”.
Pudera! Imagine-se, paciente leitor, num ambiente como o descrito. E a
descrição de Marcel Schwob coincide com as de escritores que testemunharam a
peste bubônica “in loco”, como o historiador Giovanni Villani e seu ilustre
xará, o magnífico autor do “Decamerão”, Giovanni Boccaccio.
O escritor francês
dedicou outros contos a algumas outras epidemias, mas “La peste” é o que mais
me impressionou. Raras vezes vi tamanha objetividade nas descrições e tão cru,
diria chocante (ou arrepiante?) realismo. Soube, mais tarde, que Marcel Schwob
influenciou escritores notáveis como André Gide, William Faulkner, Jerzy
Andrzejewski e Jorge Luís Borges. O contista argentino (meu “guru” literário),
aliás, confessou que um livro do seu colega francês (“Vidas imaginárias”)
serviu-lhe de modelo para escrever sua “História universal da infâmia”. E eu
que não conhecia essa talento, que escreveu uma peça de teatro em parceria com
Júlio Verne e que tinha como modelos o medieval poeta-bandido francês, François
Villon, e Robert Louis Stevenson, autor de “O médico e o monstro”!!!
Conhecê-lo, sem dúvida, foi preciosíssimo acréscimo à minha (ainda) incompleta
cultura literária. Um dia ainda chego lá!!!!!
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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