Tuesday, May 03, 2016

O duplo pioneirismo de Giovanni Boccaccio


Pedro J. Bondaczuk

O “Decamerão” constitui-se, até hoje, no mais conhecido relato literário da pandemia de peste bubônica que assolou, além de Florença, praticamente toda a Europa meridional, a partir de 1347. Nesta obra ficcional Giovanni Boccaccio utiliza a mortal doença como “pano de fundo” para narrar exatas cem histórias curtas, muitas cômicas, outras tantas picantes, mas revolucionárias para a época. Ele coloca essas narrativas na boca de dez narradores que inventou – sete mulheres e três homens – todos membros da burguesia florentina. Para fugir da peste, estas pessoas abandonam Florença e se abrigam numa casa de campo. E o grupo estabelece um pacto: todas as noites, para animar a vigília, um deles teria que contar uma história diferente. E todos deveriam participar. São estas narrativas que compõem as cem pequenas novelas do livro.

Mas a peste negra não aparece, somente, como pretexto para a reunião dessas dez pessoas e para suas respectivas narrativas. Giovanni Boccaccio faz meticulosa (e primorosa) introdução, em que descreve, com propriedade de causar inveja a qualquer cientista (que não era), os sintomas da doença. E não se limita a isso, mas avança e chega a especular sobre as causas desse mal, mas diferindo da generalidade das pessoas que as atribuíam unicamente a um “castigo” divino. Oportunamente, comentarei com mais vagar, esse livro. Hoje, meu foco é seu autor, que passou para a história como autor de dupla façanha com o “Decamerão”. Ou seja, foi pioneiro na criação do realismo na Literatura e como um dos mentores do que viria a ser conhecido como o Renascimento italiano nas artes e na cultura.

Giovanni Boccaccio não era, propriamente, ficcionista. Aliás, nessa época, praticamente inexistia o hábito de se “inventarem” histórias, a não ser peças teatrais, geralmente de cunho moral. Ele era poeta e crítico literário. Era considerado o maior especialista na obra de Dante Alighieri. Consta que ao ler o livro desse ilustre florentino, que então se chamava, somente, “A comédia”, ficou tão fascinado, que lhe acrescentou a palavra “divina”. E assim o título acabou sendo modificado para sempre e conhecido no mundo todo, através dos tempos. Graças a Boccaccio, a obra-prima de Dante Alighieri passou a se chamar “A divina comédia”.

Há várias divergências entre os biógrafos sobre alguns aspectos da vida do autor do “Decamerão”, como, por exemplo, a cidade em que ele nasceu. Alguns garantem que foi em Paris. Outros tantos afirmam que foi na cidade toscana de Certaldo. Mas todos concordam na data de nascimento: 16 de junho de 1313. O fato é que Boccaccio era filho ilegítimo de um mercador toscano, que tentou prepará-lo, desde tenra idade, para o comércio. Essa, porém, não era a vocação daquele moço inteligente e inquieto. O pendor para as letras manifestou-se desde cedo e findou por prevalecer. Seu “Decamerão”, de acordo com os críticos literários, é um “dos exemplos mais representativos do choque e da síntese de valores morais e sociais do final da Idade Média”. Essa ruptura com a tradição é um dos principais esteios do Renascimento (ou Renascença, como queiram).

Cataloguei 17 livros que Boccaccio publicou. Não sei se é a totalidade da sua obra. Provavelmente, não. Mesmo que tivesse tão somente o “Decamerão”, este valeria (como de fato vale), pelo ineditismo e pela forma original  e competente como foi escrito, por toda uma biblioteca. Alguns dos seus livros são sobre Dante Alighieri, sobretudo sobre “A divina comédia”. Destaque-se que Boccaccio permaneceu em Florença durante todo o tempo em que a epidemia de peste bubônica durou (ao contrário dos dez “narradores” que criou no “Decamerão”) e escapou ileso da doença. Só se mudou para Certaldo em 1363, cidadezinha da Toscana onde morreu, doze anos depois (em 21 de dezembro de 1375), com a idade de 62 anos.

Seu livro influenciou diversos escritores, de vários países, épocas e gerações, como Voltaire, Moliere, Gotthold Ephraim Lessing, Jonathan Swift, William Shakespeare, Lope da Vega, Percy Bysshe Shelley e Alfred Tennyson, entre tantos outros. Muitas das histórias que incluiu no livro eram narrativas populares, passadas de pai para filho, que ele ouviu e incorporou. Contudo, suas histórias denunciam, de forma nua e crua, como nunca antes ninguém tinha feito, as mais baixas paixões, os vícios, as maldades e as várias idiossincrasias humanas. “Decamerão”, portanto, é um livro que não pode faltar em nenhuma boa biblioteca que se preze.


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