O duplo pioneirismo de
Giovanni Boccaccio
Pedro
J. Bondaczuk
O “Decamerão”
constitui-se, até hoje, no mais conhecido relato literário da pandemia de peste
bubônica que assolou, além de Florença, praticamente toda a Europa meridional,
a partir de 1347. Nesta obra ficcional Giovanni Boccaccio utiliza a mortal
doença como “pano de fundo” para narrar exatas cem histórias curtas, muitas
cômicas, outras tantas picantes, mas revolucionárias para a época. Ele coloca
essas narrativas na boca de dez narradores que inventou – sete mulheres e três
homens – todos membros da burguesia florentina. Para fugir da peste, estas
pessoas abandonam Florença e se abrigam numa casa de campo. E o grupo
estabelece um pacto: todas as noites, para animar a vigília, um deles teria que
contar uma história diferente. E todos deveriam participar. São estas narrativas
que compõem as cem pequenas novelas do livro.
Mas a peste negra não
aparece, somente, como pretexto para a reunião dessas dez pessoas e para suas
respectivas narrativas. Giovanni Boccaccio faz meticulosa (e primorosa)
introdução, em que descreve, com propriedade de causar inveja a qualquer
cientista (que não era), os sintomas da doença. E não se limita a isso, mas
avança e chega a especular sobre as causas desse mal, mas diferindo da
generalidade das pessoas que as atribuíam unicamente a um “castigo” divino.
Oportunamente, comentarei com mais vagar, esse livro. Hoje, meu foco é seu
autor, que passou para a história como autor de dupla façanha com o
“Decamerão”. Ou seja, foi pioneiro na criação do realismo na Literatura e como
um dos mentores do que viria a ser conhecido como o Renascimento italiano nas
artes e na cultura.
Giovanni Boccaccio não
era, propriamente, ficcionista. Aliás, nessa época, praticamente inexistia o
hábito de se “inventarem” histórias, a não ser peças teatrais, geralmente de
cunho moral. Ele era poeta e crítico literário. Era considerado o maior
especialista na obra de Dante Alighieri. Consta que ao ler o livro desse
ilustre florentino, que então se chamava, somente, “A comédia”, ficou tão
fascinado, que lhe acrescentou a palavra “divina”. E assim o título acabou
sendo modificado para sempre e conhecido no mundo todo, através dos tempos.
Graças a Boccaccio, a obra-prima de Dante Alighieri passou a se chamar “A
divina comédia”.
Há várias divergências
entre os biógrafos sobre alguns aspectos da vida do autor do “Decamerão”, como,
por exemplo, a cidade em que ele nasceu. Alguns garantem que foi em Paris.
Outros tantos afirmam que foi na cidade toscana de Certaldo. Mas todos
concordam na data de nascimento: 16 de junho de 1313. O fato é que Boccaccio
era filho ilegítimo de um mercador toscano, que tentou prepará-lo, desde tenra
idade, para o comércio. Essa, porém, não era a vocação daquele moço inteligente
e inquieto. O pendor para as letras manifestou-se desde cedo e findou por prevalecer.
Seu “Decamerão”, de acordo com os críticos literários, é um “dos exemplos mais
representativos do choque e da síntese de valores morais e sociais do final da
Idade Média”. Essa ruptura com a tradição é um dos principais esteios do
Renascimento (ou Renascença, como queiram).
Cataloguei 17 livros
que Boccaccio publicou. Não sei se é a totalidade da sua obra. Provavelmente,
não. Mesmo que tivesse tão somente o “Decamerão”, este valeria (como de fato
vale), pelo ineditismo e pela forma original
e competente como foi escrito, por toda uma biblioteca. Alguns dos seus
livros são sobre Dante Alighieri, sobretudo sobre “A divina comédia”.
Destaque-se que Boccaccio permaneceu em Florença durante todo o tempo em que a
epidemia de peste bubônica durou (ao contrário dos dez “narradores” que criou
no “Decamerão”) e escapou ileso da doença. Só se mudou para Certaldo em 1363,
cidadezinha da Toscana onde morreu, doze anos depois (em 21 de dezembro de
1375), com a idade de 62 anos.
Seu livro influenciou
diversos escritores, de vários países, épocas e gerações, como Voltaire,
Moliere, Gotthold Ephraim Lessing, Jonathan Swift, William Shakespeare, Lope da
Vega, Percy Bysshe Shelley e Alfred Tennyson, entre tantos outros. Muitas das
histórias que incluiu no livro eram narrativas populares, passadas de pai para
filho, que ele ouviu e incorporou. Contudo, suas histórias denunciam, de forma
nua e crua, como nunca antes ninguém tinha feito, as mais baixas paixões, os
vícios, as maldades e as várias idiossincrasias humanas. “Decamerão”, portanto,
é um livro que não pode faltar em nenhuma boa biblioteca que se preze.
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